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por Cátia Silvestre Mais um dia… Nesta cela fria de emoções, penso naquilo mudava naquele dia. Não consigo deslindar o que aconteceu, algo que não fiz e agora pago, pago todos os dias…
Até há cinco anos éramos uma família feliz na maior parte dos dias, sim porque todos temos defeitos e nem tudo eram rosas, dois filhos, uma mulher que sempre fez tudo por nós, organizada, trabalhadora, mas muito autoritária. Não havia dia que não tivesse algo fora do normal, que ela não reclamasse… Tínhamos discutido no dia anterior, as discussões do costume, mas nada que fizesse adivinhar o que estava para vir. Cheguei a casa, do trabalho, e achei estranho que tudo estivesse calmo. Todos os dias chegava e havia barulho, um barulho normal, miúdos aos saltos, a mulher a cozinhar, o dia normal de quem trabalha… Fiquei preocupado, pensei que alguma coisa de mal tivesse acontecido, percorri todas as divisões em busca de algo estranho, mas nada… Quando entrei na casa de banho, dei de caras com a mulher deitada no bordo da banheira, nua, sem respirar. Tentei de tudo para que acordasse… Mas já era tarde… Como os miúdos não estavam e não havia nada fora do lugar, percebi que fora planeado por ela, existia um frasco de comprimidos na mesa de cabeceira do quarto… Vazio!! Não soube o que fazer, entrei em pânico, pedi aos vizinhos que chamassem a polícia. Depois disso, fui levado para o posto, alguém disse que discutíamos muito, perguntaram-me o que tinha feito, disse que não fui eu, estive a trabalhar, não acreditaram... Insistiram em perguntar se lhe batia, os vizinhos ouviam o barulho das nossas discussões e disseram que eu podia ser violento… mas não, acreditem não fui, nunca fui… Nunca se dignaram a perguntar o contrário. A sua mulher batia-lhe? Se perguntassem a resposta era outra… Mas ela também já não está cá para se defender… Fui condenado à pena de morte por homicídio, sem ter tocado em ninguém… Os dias aqui são passados a olhar pela janela pequena, a pensar nos meus filhos, que ninguém traz para eu ver. Deixei de ter família, aqui não há amigos… Mas a espera está a terminar, cada vez que penso que vou morrer sem culpa, ou se calhar até tive. A mulher já não andava bem e as discussões eram mais que muitas… Será que se tivesse visto antes, nada disto teria acontecido? Não vale a pena agora culpar ninguém, ela já não volta e eu dentro em breve vou partir… Conto os dias, mesmo sabendo que são sempre iguais desde que aqui cheguei, dormir, comer e pensar… 2/16/2022 O Maestro (e a Maestrina)por Sissi Mar A minha vida mudou quando a reencontrei!
Eu vinha com buracos gigantescos no coração, que ela com toda a maestria remendou e curou com amor. Ela tinha a alma afogada na dor e no desalento que eu, com toda a minha paciência e paixão, enxuguei. Voltei a apaixonar-me e foi ali, naquele moinho sem asas, que ao fim de tanto tempo me tornei o seu maestro e ela a minha maestrina. Juntos vivemos a mais lamecha e também a mais bonita história de amor e vivemos esse amor como personagens principais no filme da nossa vida. Adorava a vida simples e gratificante que tinha com ela, como desviar-lhe as melenas brancas do cabelo quando adormecia no meu ombro, ou o simples ato de ela me docilizar a franja grisalha e revolta, e ajeitar-me o cabelo num coque quando lia o meu jornal, ou ainda, rumarmos sem destino só e apenas pelo prazer de estarmos juntos de mãos dadas a ver as estrelas que eu jurava que um dia lhe ia oferecer. Quando nos amávamos, éramos a sinfonia perfeita entre as estrelas do céu e o seu sol radioso numa cama de eterna primavera. E estava tão feliz! Até que a vida ma tirou naquele atropelamento sem nexo, e ela levou consigo a batuta da minha existência. Nesse dia comecei a morrer. Adoeci lentamente num tempo que já não me aquecia a alma…. Um tempo que se começou a apagar com dores constantes e estendidas num mesmo tempo que não lhe achava o fim. E depois recordo-me das palavras da médica que me fitava friamente. “É um tumor no cérebro. Inoperável!” Nunca mais me esqueci da minha sentença de morte. Estava um frio pegajoso, daqueles que se colam à pele como caramelos amargos. As moscas batiam contra o vidro, preguiçosas e estupidas. Perguntei se havia cura…. O seu olhar aquoso desbravava os meus como que a pedir desculpa. As suas mãos ossudas fechavam-se pelo indesculpável. Estava condenado à morte! Sem sustentação, a minha dor aumentava na proporção do meu desalento e fui adoecendo cada dia um pouco mais, até hoje não me restar mais nada. Estou vazio e oco. Hoje é o meu último dia e sei-o como as borboletas sabem quando é a Primavera ou quando as folhas das árvores caem no Outono. Não tenho medo! Sei que ela me espera do outro lado da vida onde vou recolher ao útero cósmico divino, banhado na luz que ela sempre me deu. Lentamente… tão lentamente que o mesmo tempo que me consome terá os ponteiros gastos pela eternidade. Voltei a ser feliz e parto com a certeza de que fui o Maestro da minha vida, e que por amor fiz dela a minha Maestrina. Renasci e parto nesse amor que me uniu a ela numa partitura perfeitíssima de uma orquestra inacabada! por Estefânia Barroso Querido diário:
penso que estas serão as últimas linhas que virei aqui partilhar contigo. Ao que parece, a minha hora está a chegar. Já me vieram aqui perguntar qual seria o meu desejo para última refeição. Acreditas que pedi um bitoque? Quão básico se pode ser? – estarás tu a questionar nessa hora, não é? Mas a verdade é que não é uma questão de ser básico. Estou a ser prático. Se obedecesse aos meus gostos requintados teria pedido um bom prato de marisco: uma sapateira, uns camarões, umas ostras, percebes e até, quem sabe, uma lagosta. E teria pedido um bom vinho para acompanhar! E uma sobremesa! Ah como eu gostaria de uma bela tarte de maçã acompanhada de uma bola de gelado de baunilha! Mas não! Sabes o que pedi? Nem vais acreditar! Pedi um pudim flã daqueles que se vendem nos supermercados. Quão miserável se pode ser, não é? E não, também não pedi vinho de qualidade, champanhe ou o que quer que seja. Pedi água para acompanhar o meu “fabuloso” bitoque e o meu “saborosíssimo” pudim flã. Sinto que estás a ouvir-me e a procurar uma explicação para essa autossabotagem à minha última refeição, certo? Mas não te canses, eu próprio te vou explicar quais as razões que me movem. Estou arrependido do que fiz, dos meus crimes. Como pude tirar a vida àquela inocente cuja única culpa foi passar por mim na hora em que os demónios, na minha cabeça, me infernizavam? Não mereço ter qualquer momento, na vida que me resta, que me seja mais doce, mais agradável. Mereço sofrer a ausência de todos aqueles que, de algum modo me foram caros na vida, mereço sofrer ao pensar que poderia comer algo delicioso e não o fazer, mereço não voltar a provar o preciso néctar, mereço ser infeliz até ao fim dos meus dias…bem, das minhas horas, falando de um modo mais correto! Então, que te parece, querido diário? A minha história é convincente o suficiente? É que é esta a história que quero contar ao padre, quando ele vier aqui para as minhas últimas confissões. Pobre tipo, não quero que ele pense que é um completo falhado e que todas as conversas que teve comigo não serviram de nada. A verdade (e essa só te a conto a ti) é que tive a alegria suprema de calar os demónios na minha mente. Se isso implicou tirar a vida àquela miúda…azar. Por isso não quero sair deste mundo com pena de o deixar. Nada pode fazer-me mais feliz do que o silêncio que se instalou na minha mente desde o dia em que matei a miúda. E a alegria suprema que senti? E a paz que me envolveu quando senti o sangue quente da minha vítima jorrar pelas minhas mãos, enquanto sentia que o brilho dos seus olhos se ia desvanecendo e a vida ia fugindo daquele corpo franzino e frágil?! Tive nas mãos a felicidade suprema e tenho-me alimentado dessa felicidade desde então. Não quero a minha comida preferida, não quero vinho de qualidade, não quero nada. Tal como não quis qualquer tipo de relacionamento com as poucas pessoas com quem me fui cruzando nestes tempos de cárcere. Tudo isso me poderia trazer, na hora de abandonar este mundo, alguma pena de partir tão cedo. Eu quero sair daqui em grande, com um sorriso no rosto, feliz pelo rumo que a minha vida seguiu. É um facto que tirei uma vida que ainda tinha muito para viver. Mas também eu morri para o mundo nesse dia. O que se pode desejar depois de sentir que tivemos nas mãos tudo aquilo que sempre desejámos? Atingi o zénite, a felicidade suprema, calei as vozes na minha mente que desde sempre me infernizaram a vida. Agora, o que posso esperar se não a morte? Olha, como dizia aquela famosa pintora “Espero que a partida seja feliz e espero nunca mais voltar”. Querido diário, adeus. Esta será a última entrada neste caderninho que foi a minha única companhia nos últimos dois anos. 25 de janeiro, 2022. |
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