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Nada mais me espera. Ou pouco. Vivo cada dia como se fosse o último, porque o relógio assim o dita. Cada segundo que passa é menos uma oportunidade que tenho. A morte que chegará, é o que tenho como certo. Como me arrependo do crime que cometi, agora percebo-o bem. Aliás, desde o momento de recebida a minha sentença que o sei. Foi nesse momento que caiu em mim o pior de todos os sentimentos, a culpa. É tão pesada.
Como sinto falta das coisas mais simples. Sentir o cheiro da terra molhada, de um fósforo acabado de apagar, quando acendia o fogão em casa… Os bolos que a minha mãe fazia. Um banho bem quente, sem interrupções ou medo. A cadeia tira-nos tudo, especialmente a dignidade, a tranquilidade e a segurança. Estamos sempre alerta. Sempre à espera do que vá suceder. Estamos sempre a olhar por cima do ombro, porque a vida aqui não tem valor. Vale tudo, por isso a morte que me espera, será o momento em que vou descansar. Arrependo-me, sim. Se pudesse tinha feito tudo diferente. Fui influenciada e pago por isso, com cada momento da vida que ainda me resta. Mais do que o castigo da prisão, sou castigada por mim, pelos meus pensamentos, viver com este terror cá dentro, dói. Dói muito e sempre. Muitas vezes falta-me o ar e o chão. Fico suspensa no pensamento do momento em que roubei aquela vida. Mas não aguentei mais. Os ataques e abusos de que fui alvo, cegaram-me. Podia ter-me afastado, e tentei várias vezes, mas era sempre perseguida. E lamento. Lamento muito. Quer pela vida que perdi, quer pelas pessoas que magoei. Devia ter fugido. Fugido para bem longe. Para onde pudesse recomeçar, sem pressões ou mágoas. Sem violência. No sonho de recomeçar uma vida nova, perdi-me. E não o devia ter permitido. Devia ter lutado, ser forte e agarrar os momentos de coragem que deixei escapar. Essas fracções de segundo que deixei escapar tinham mudado tudo. Especialmente aquilo por que agora passo os dias a aguardar. A morte. O que será? Como será? Espero ao menos, como último suspiro encontrei os meus. Aqueles que sabem, bem no fundo de mim, aquilo que sou. Que o crime que cometi não me define. Que o céu me traga uma nova vida. Aquela com que sonhei tantas vezes. Aquela que deixei escapar… por não ter tido coragem de lutar. Por mim. 2/7/2022 Zayapor Raquel Lopes Riade, 12 de janeiro de 2000
Um ano neste antro de injustiça, onde a mulher é tratada como um ser acéfalo. Recuo ao dia em que entrei. Olhares de nojo fitaram-me a cada trocar de pés, até ao cubículo onde me instalei. O sol apenas chegava por uma frecha. A comida, aquecida pelo calor desértico, sabia a sofrimento. As paredes transpiravam um assédio amordaçado pelo medo de morrer. Cheirava a perversão. O pânico paralisava-me. Trincava o choro a cada “não” suplicado em surdina. Gritos de violação intercalados com ordens atrozes ainda ecoam na minha cabeça. Um mês naquele inferno, onde o ar me pesava mais que a consciência. Esperavam que vergasse — o que nunca aconteceu —, e acabei mudada para este caixote de lixo, com vista para o deserto. Mudei de alcova, mas a repulsa manteve-se. O abuso apenas era discreto. Amanhã este sufoco acaba. Das várias formas possíveis, calhou-me a decapitação. Morrerei plena. Adúltera para eles, para mim nunca. Casei sem pedir e não consumei essa união. Tomou-me o corpo, mas não me tocou a alma. Ele sabia-o e odiava-me por isso. Sempre amei Kamal. Fui perseguida quando decidi abandonar o palácio. Ele acabou morto aos meus pés, com duas balas cravadas no peito. Pedi o mesmo destino. Sorrio, pois em breve estaremos juntos, sob a proteção de Alá. Não é castigo, nem foi um crime. Uma mulher é tão adúltera por amar outro homem como um homem é inocente por violar uma mulher. O adultério será uma realidade enquanto as mulheres sauditas não tiverem voz de si mesmas. Até sempre. Zaya 2/3/2022 IVpor Marta Janicas Há muito tempo que uso numeração romana para identificar em que dia vou, mas na verdade isto não significa que seja dia quatro. Significa que tenho quatro dias até ao meu último dia.
Desde o dia da sentença que não conheci outro lugar que não esta cela, não voltei a ver a rua, o sol que distingue a noite do dia apenas me visita à tarde, através da minúscula janela que se encontra no canto superior esquerdo. Passo todo esse tempo sentado na sanita, é apenas aí que o sol bate direto. É a minha altura favorita do dia. Não é que tenha muitas mais alturas, mas esta em que escrevo e a que me traz o banho solar são as que mais me aprazem. Podem calcular, se alguma vez lerem estas folhas, que por esta altura a refeição miserável que me trazem diariamente não me deixa mais feliz. Se morrer de fome as únicas alterações são o dia e o modo. Morrer, para mim, neste momento, traz tranquilidade e encerramento. Nem sempre pensei assim, mas despeço-me da vida como se de uma velha amiga se tratasse. Por hoje é tudo, guardei para os últimos três dias as listas que podiam fazer da minha vida uma vida diferente: A lista de arrependimentos; A lista de desejos por cumprir; A lista de todos os pedidos de desculpa. |
Desafios de escrita criativa
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Novembro 2022
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2/10/2022
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