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4/30/2020

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Suspensão

 

de Mara Frade

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Flutuando como uma pena Ana Rosa deixou-se levar pela luz que a impelia para cima, para além das copas verdejantes daquela ilha mágica, onde a Natureza se sobrepunha sempre ao homem e o fazia esquecer a sua condição de mortal.
            Por vezes é necessário deixarmo-nos ir sem resistência, sem lutas…
 
            Chovia. Uma chuva apocalíptica desabava sobre o alpendre enquanto José Diogo de Almeida se estendia na sua cadeira de espaldar alto, observando do terraço virado ao mar, a chegada do seu navio. Já habituado a estes macaréus, levantou-se e procurou abrigo debaixo da enorme porta aberta de par em par.
            - Já chove. – disse para Ana Rosa que, como todas as tardes após o almoço, lia o seu romance de cordel sentada na sala, enquanto degustava um Porto no seu cálice de cristal.
            - Como sempre, nesta terra sem eira nem beira. Aqui chove demais, meu marido.
            Ana Rosa nunca se habituara à grandiosidade do clima do Príncipe. Criada ao abrigo dos cânones europeus da boa e prendada esposa, via-se todos os dias confrontada com as excentricidades daquela ilha, do seu clima e do seu povo. Quando tinha 10 anos, o seu pai, João Manuel Ferreira, membro acérrimo da nobreza empobrecida, arrancara-a por entre gritos e choradeiras às saias da sua perceptora e mandara-a para um colégio de freiras no Porto. Aí, sob o manto dos pai-nossos e das ave-marias, Ana Rosa viveu a sua adolescência. Foi-lhe incutido o sentido do pecado e a vergonha dos sentimentos assolapados do coração.
            Um dia, a abadessa chamou-a à sua sala e deu-lhe a notícia: “Ana Rosa, o senhor seu pai mandou-me anunciar que a menina irá casar dentro de três meses.”
            A jovem aceitou a informação, com a candura de quem pensava libertar-se da rigidez clerical em que vivia e com a felicidade de um prenuncio de liberdade que vislumbrou no seu futuro. Porém, no desenrolar do discurso, a abadessa descreveu em pormenor que ela iria desposar um jovem abastado, é certo, mas que o mesmo era filho de comerciantes de cacau e que, Ana Rosa, partiria dentro de 15 dias num navio rumo a São Tomé e Príncipe.
            Mais uma vez, lavada em lágrimas e com um aperto no peito, Ana Rosa embarcou no Cais de Lisboa, levando na sua mão direita um rosário de pérolas e ao peito uma imagem da virgem. Da amurada do enorme navio, Ana Rosa viu Lisboa desaparecer ao longe, o Terreiro do Paço cada vez mais ténue, à luz intensa do sol lisboeta. Portugal foi ficando para trás e o medo do desconhecido ia crescendo dentro de si como uma erva daninha que lhe asfixiava o coração.
        Ana Rosa julgou que o seu pai a tinha enviado propositadamente para que morresse em África. A sua companheira de viagem era uma velha criada da casa, infelizmente destacada para o efeito. A pobre criatura padeceu de náuseas e afrontamentos durante todo o percurso, gemendo e contorcendo-se no camarote. Ana Rosa, aos 16 anos, sentia-se mais sozinha e mais perdida do que alguma outra jovem da sua idade se poderia alguma vez ter sentido.
 
                Numa manhã lisa de nuvens, sob o sol quente do equador, Ana Rosa viu pela primeira vez, na linha difusa do horizonte, a terra que iria habitar. Um pequeno monte no meio do mar, uma mancha verde a flutuar no azul límpido das águas. Foi levada para a praia num bote, acompanhada pela sua fiel companhia de viagem que continuava implacavelmente a gorgolejar vómitos borda fora. Um bando de aves marinhas escoltou a embarcação até à praia e cardumes de peixes cruzaram as águas cristalinas aos seus pés.
            Foi nesse momento que viu pela primeira vez o seu marido, José Diogo de Almeida. Pés descalços, sobre a areia grossa, as calças brancas arregaçadas a meio das coxas, entrou pela restinga e segurou na mão de Rosa, ajudando-a a sair do bote. Ana Rosa aceitou a sua ajuda e soube, nesse preciso e exacto momento, que estava total e abnegadamente apaixonada por aquele homem alto e confiante de si mesmo.
               Casaram debaixo de chuva. Toda a sociedade são-tomense veio assistir à boda, ansiosos por conhecer a jovem esposa do homem mais rico da ilha, transpirando e bufando, apertaram-lhe a delicada mão até à náusea. E, nessa noite, ao invés de a fazer conhecer os prazeres da carne, José Diogo, enfiou Ana Rosa num pequeno barco cheio de negros e sacas de ráfia e cruzaram o mar rumo à Ilha do Príncipe, onde ela deveria passar o resto dos seus dias.
 
             José Diogo estava consciente de que era necessário firmar o seu lugar na alta sociedade através do matrimónio. Dúvidas houvesse sobre a questão, seu pai, no seu leito de morte havia-lho repetido até à náusea: “Não é suficiente para esta gente que saibas três línguas, que sejas bacharel em Direito ou que tenhas mais dinheiro do que o que há em todos cofres do Reino, Zé Diogo, meu filho, para seres reconhecido tens de ter um bom casamento”
Esperou três anos até o fazer. E, após várias insistências por parte do seu sogro Dom João Manuel Ferreira, lá acedeu a desposar a sua jovem e casta filha, Ana Rosa.
                Era de facto uma donzela cuja santidade e temor a Deus eram irrepreensíveis. Dom José nunca lhe vira um seio que fosse, já que Ana Rosa insistia em fazer sexo vestida e totalmente às escuras.
               Estranhamente, naquela ilha selvagem, onde o calor e a humidade aqueciam os corpos e os desejos, Ana Rosa nunca dera mostras de se ter incendiado. E José Diogo vivia bem com isso. Cumpriu com o seu dever de marido, no início com algum entusiasmo pela novidade e pela vontade de lançar uma semente que germinasse. Com o passar dos anos, sem que Ana Rosa desse fruto, José Diogo acalmou a sua ânsia de deixar descendência e aceitou isso como um facto consumado e sem retorno. Foi perdendo o interesse por Ana Rosa e pelas suas novenas e rosários.
              E ela, sentida pelo abandono e pela falta de desejo do marido, refugiava-se cada vez mais nos rituais da igreja e nos romances de cordel.
 
            José Diogo tinha outros interesses muito para além dos mistérios femininos. Não fosse a promessa que houvera feito ao seu moribundo pai, nunca teria aceite o compromisso vitalício do casamento com uma mulher. Desde muito jovem que o seu passatempo preferido era espreitar os negros a banharem-se na ribeira de Água Izé. O eterno feminino nunca fez correr o sangue nas suas veias. Já o eterno masculino… em miúdo quando lia os livros de Homero e estudava os cânones da filosofia de Platão descobrira com elevado grau de certeza que, o fogo que o consumia, não estava errado. O seu pai gemia todas as noites no mato com uma negra diferente, ele espiava os músculos dos homens enquanto carregavam às costas as sacas do cacau.
              Aos vinte anos apaixonou-se por Tristão, um núbio de olhos claros, negro como a noite. Foi o seu primeiro amor a sério e o seu primeiro sexo apaixonado e com sentido. Prostitutas em bordeis, escravas no mato e dois marinheiros portugueses, nenhum deles tinha tido a dimensão ou o sentido de Tristão.
            Tristão trabalhava por entre as folhas verdes dos cacaueiros durante o dia. As noites passava-as com José     Diogo, que o ensinou a ler e a escrever entre orgasmos dilacerantes.
              Não há amor maior do que aquele que nos é vedado. Dizia muitas vezes José Diogo ao seu amante negro. “E não!”, respondia-lhe este ao ouvido.
 
              Ana Rosa descobriu Tristão porque José Diogo lho contou. Ao fim de alguns anos de matrimónio, deixa de haver segredos antigos, só novos. E Tristão era um segredo antigo. Toda a sua vida lhe passou a flutuar no momento imediatamente seguinte à confissão do marido. Pensou que ia morrer. Depois pensou que não, que o pecado não era seu, mas de José Diogo, e que as chamas do inferno estavam guardadas para ele. Mas, no fundo, a grande questão era a de que o seu ego de fêmea tinha sido enxovalhado pela declaração do marido.
                 Essa revelação, ao invés de enfraquecer o amor de Ana Rosa, tornava-o cada dia mais forte, alimentado por uma estranha esperança de que o seu marido fosse iluminado por uma luz divina e a desejasse com o ímpeto com que desejava o núbio com quem fodia quase todas as noites.
            Doze anos volvidos sobre o dia do seu matrimónio, Ana Rosa decidiu que ia engravidar, custasse o que custasse, ela tinha de ser mãe, como a virgem a quem era devota, queria carregar no ventre o filho de José Diogo. Impelida pelo seu súbito desejo, desceu a correr pelo caminho que conduzia às casas dos negros, trabalhadores da roça e dirigiu-se à capela. Aí chegada, acendeu uma dezena de velas e, enquanto a cera quente se derretia com o calor do fogo, fez um ror de promessas à sua virgem, que pagaria se Ela lhe concedesse o milagre de conceber.
Nessa noite, deixou que o marido bebesse o seu conhaque, fumasse o seu charuto e dissertasse sobre os problemas do reino, fingindo ouvi-lo com interesse. Seguiu-o até ao quarto e esperou à porta.
          - Que se passa mulher? – Disse José Diogo, surpreendido pelos olhos com que Ana Rosa o olhava nesse momento.
              - Quero um filho seu, meu marido.
             José Diogo deu uma gargalhada. Aproximou-se dela e, com a doçura do amigo com que ela já se habituara a viver, encaminhou-a para o seu quarto: “Minha querida Ana Rosa, já deveria ter reparado que nem com milagres lá iremos!”
 
 
              A humidade quente da noite espalhava-se sobre a via láctea, quando Ana Rosa saiu de casa. A sua camisa de noite, leve e branca, levitava sobre as ervas e a lanterna que levava na mão davam à cena um ar espectral.
Seguindo o seu instinto, deslizou por entre as casas dos trabalhadores da roça e parou na porta da de Tristão. Ouviu a voz límpida do marido e as gargalhadas do negro. Entrou, para espanto de ambos os homens, olhando fixamente para o seu, Ana Rosa disse:
            - Esta noite meu marido, e em todas as outras noites, até que me emprenhe, eu não vou largar a sua cama, seja ela onde for!
             Os dois homens trocaram um olhar surpreendido entre si. Foi Tristão quem se dirigiu primeiro a ela “Pode ficar. Quer ficar senhora?” e estendeu-lhe a mão.
             José Diogo levantou-se e tomou para si a mão da sua mulher. “Que se passa Ana Rosa, o que pretende com isto?”
          - Que me ame, que me dê um pedaço daquilo que dá a este negro. Posso render-me ao seu pecado, arder no seu inferno, mas queria que rasgasse a minha solidão de uma vez por todas e fizesse de mim sua mulher.
Tristão aproximou-se de Ana Rosa e desapertou-lhe delicadamente o fio de ouro com a medalha da virgem que ela trouxera ao pescoço desde Portugal, deixando-a cair por entre as ripas de madeira do chão. “Ardemos os três no inferno, senhora?”
             Ana Rosa não tirou os olhos dos olhos do seu marido, ilha desalmada esta onde vivia: “Ardemos sim!”
 
            Flutuando como uma pena Ana Rosa deixou-se levar pela luz que a impelia para cima, para além das copas verdejantes daquela ilha mágica, onde a Natureza se sobrepunha sempre ao homem e o fazia esquecer a sua condição de mortal.
            Por vezes é necessário deixarmo-nos ir sem resistência, sem lutas… e sucumbir a nós próprios.´
            Assim, os três num só, viveram felizes para sempre!

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4/29/2020

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Desafio de escrita criativa

 

semana 5

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Este é o tema proposto para esta semana, mas desta vez pedimos-te um texto curto. Conta-nos a tua história em 100 palavras.
E-mail para envio do texto: info@laboratoriodeeescrita.pt.

Boas escritas!

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4/23/2020

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Texto vencedor do desafio de escrita criativa

 

"Desfocado", de Joana Leitão

texto vencedor desafio escrita criativa, joana leitão

Um raio de sol atinge as minhas pálpebras. Cerro mais os olhos até franzir o rosto. Abro os olhos. Fecho. Abro. O céu azul cria cenário ao campo amarelo de trigo. Tento levantar-me, mas as dores nas pernas da posição estática da noite passada, cravam o meu corpo à terra. Não dei por nada, adormeci de cansaço. Não dei por ela sair do meu passo.  
 
Não sei o que me deu quando decidi interromper a minha viagem para a consulta de cardiologia. O apito do comboio fez-me estremecer e não resisti: quase saltei da composição em andamento, no impulso de sair atrás dela naquele apeadeiro algures em lado algum.

Um campo de trigo a perder de vista. Uma vista serena e mágica, como ela! Ela, que eu já não queria perder, mesmo sem saber quem era e onde nos encontrávamos. Ela corria graciosa e leve de ar sorridente. Uma saia azul céu comprida e rodada mergulhava naquele mar amarelo, como se o sol se refletisse por inteiro na terra. O top branco delineava-lhe o peito e concedialhe uma pureza espiritual.

- espera! – chamei – diz-me o teu nome.

Precisava de ouvir a voz dela, não podia fuigir assim. Tinha a certeza que desmaiaria quando aquele corpo falasse. Tinha a certeza que o timbre encaixaria no seu corpo perfeito.

Ela virou-se repentinamente, abrandando o passo, os seus cabelos claros abriram em leque, mas apenas sorriu e eu fiquei sem voz para a chamar de novo. Continuou o seu caminho aos saltinhos, agora sabendo ter plateia, sabendo ser, propositadamente, sensual. Aqueles movimentos de sedução estavam a dar comigo em doido, queria agarrá-la, elevá-la no ar e depois fazê-la descer lentamente, deslizando o seu corpo no meu até poder sentir os seus lábios.

A minha imaginação levou-a para longe. Corri, agora sem me importar se causaria nela medo ou emoção. Consegui aproximar-me sem a assustar, mantendo a distância de segurança, mas tão próximo o suficiente para memorizar os traços do seu rosto e o seu aroma apimentado a almíscar. Tocámo-nos com o olhar, inspirámos o mesmo ar e saboreámos o momento estranho que nos percorreu o corpo em batidas cardíacas apressadas, enquanto o sangue competia em veias caracoleantes, provocando-nos respirações ofegantes e no cérebro novas sintonizações arrepiantes.
 
Ela serenamente sorriu e virou-se na direção do seu caminho.

- por favor... – pedi – olha para mim, só mais uma vez!

Ela felizmente acedeu e olhou para trás. Eu apontei o meu telemóvel, capturando o momento em que as setas solares do crepúsculo trepassavam os seus compridos cabelos loiros e se difundiam no amarelo do trigo, fazendo refletir para sempre aquele olhar esmeralda, gravado na minha mão. Senti-me desfalecer e devo ter desmaiado de cansaço. Agora estou perdido e não sei que direção tomar. Direita? Esquerda?
 
Sinto-me sufocado. Olho para a minha mão e consigo sorrir ao ver o sorriso dela.

Fecho os olhos. Semi-abro as pálpebras. Vejo uma mancha desfocada amarela, ouço ao fundo um apito de máquina hospitalar, sinto o calor de uma mão suave e carinhosa, e no ar o aroma apimentado do almíscar... inspiro fundo, não sinto batidas cardíacas... fecho os olhos.  

Direita ou esquerda?  

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