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4/22/2020

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Desafio de escrita criativa

 

semana 3

Imagem

Desta vez não te propomos um tema, propomos uma foto.
Inspira-te na imagem acima e envia-nos, até à próxima quarta-feira, um texto com até 2000 palavras.
E-mail para envio do texto: info@laboratoriodeeescrita.pt.

Boas escritas!

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4/16/2020

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Texto vencedor do desafio de escrita criativa

 

Ala psiquiátrica - texto de Mara Frade

Imagem

Aquele silêncio suspenso domina o ar, como sucede sempre que as luzes se apagam inusitadamente. Parei uns segundos até o meu cérebro processar a informação e os meus olhos se habituarem ao escuro. Lentamente, desloquei-me até ao interruptor na parede. Pressionei o botão. Nada mais, além do silêncio.

Não fosse a minha mente clara e capaz de se adaptar racionalmente às circunstâncias, certamente me julgaria perdida no meio de um livro do Stephen King. “Respira”, pensei, “conheces esta ala de psiquiatria como a palma das tuas mãos, respira…”. “Tenho duas hipóteses” alvitrei para mim mesma: “ou fico à espera de que alguma alma caridosa vá inspeccionar os fusíveis, ou eu mesma, alma caridosa, ponho pés ao caminho e vou ver o que se passa.”

Abri a porta do meu gabinete e coloquei a cabeça de fora. O edifico começou lentamente a acordar do sobressalto e o silêncio de há pouco ia dando lugar a murmúrios de vozes que se liquefaziam no ar. Contive a vontade imensa que tinha de gritar e indagar se havia por ali viva alma capaz de me informar se este apagão se devia a um corte de energia na rua, ou à inusitada explosão de um qualquer fusível do quadro eléctrico. Tentei baixinho: “Hei? Anda alguém por aí?”. Nada. Só um crescendo de murmúrios e pés arrastados nos mosaicos assépticos das salas. “Estamos mal!”, pensei desanimada. Ganhei forças, ou coragem, sei lá! e avancei para fora da ilusória segurança do meu cubículo.

Aqui fora as coisas assumiram contornos mais ao jeito do tal livro de S. King. A luz branca do luar penetra pelas enormes vidraças das janelas e as sombras das grades projectam-se no chão da mesma forma, acentuando ainda mais a ideia de que estou aprisionada no mundo das sombras e dos murmúrios.

Encosto a mão direita à parede das janelas e guio-me pela linha recta das suas sacadas. Vou andando, a medo, com o sentimento estúpido de que esta aventura tem tudo para correr mal. “Está aqui alguém?”, volto a perguntar.
Do lado esquerdo do longo corredor vieram diversas respostas sussurradas à minha pergunta, estranhamente a que mais me faz sentido parece-me o eco das minhas palavras “Está aí alguém? Alguém… alguém…”

Paro para me certificar de que estou na posse de todas as minhas faculdades e procuro em mim o senso de todos os outros sentidos que não o da visão, de modo a apurá-los ao máximo. “Mais uns metros e chegas às escadas”, digo a mim mesma em voz alta. E avanço, acelerando cada vez mais o meu passo, num receio pueril deste desconhecido que, até há pouco, me era tão familiar.

Sinto algo na minha mão esquerda, é o papel de há pouco, que o meu paciente me tinha passado sub-repticiamente no final da nossa consulta. Atiro-o para dentro do bolso da bata e continuo a avançar pelo corredor. Os meus sapatos a bater nos mosaicos apressadamente enquanto ainda me parece escutar o eco minha pergunta: “alguém… alguém…”
Estaquei mesmo antes de chegar ao patamar onde estariam as escadas. Os ruídos das vozes que ouvira há pouco, transformavam-se docemente em gemidos. Ouvi nitidamente o roçagar de tecidos entre os sussurros, pele com pele? Seria isso? Pele com pele?

Recuo uns passos até ao gabinete mais próximo. A porta está entreaberta e um raio de luz azul caí sobre a entrada, formando uma espécie de linha luminosa até ao interior da sala. Os sons tornam-se cada vez mais nítidos, húmidos, ritmados. “Será?”, penso “Não é possível, isto não está de certeza a acontecer?” Tento empurrar ligeiramente a porta de forma a não ser notada, mas, as dobradiças gastas, em conjunto com a minha falta de discrição habitual, fazem com que o metal e a madeira emitam um ligeiro gemido. Paro, imóvel, na esperança de não ser notada. Lá dentro, dois corpos, duas silhuetas humanas entrelaçam-se com as suas sombras vivas pela luz que lhes bate em cheio. Sem roupas, no chão. O espanto e a curiosidade fazem-me entrar. Não repararam em mim, só têm sentidos para si mesmos. Dois corpos, agora sombras e calor, envolvidos num abraço intenso, fundem-se no mais glorioso acto de amor que vira até então. Os meus pés, as minha pernas, não me permitem sair do meu lugar de espectadora, imóveis… ou serei eu que não quero sair?

O mesmo som começa a dominar toda a ala do hospital em que me encontro. Não sei se por sugestão se na realidade é o que sucede. Não sei…, mas tenho a clara sensação de que este acto de amor se está a entranhar em mim como uma urticária dos sentidos. E afasto-me daquela sala a recuar, a porta permanece aberta e a luz volta a bater em cheio nos dois seres humanos que se amam sem se darem conta de mim, ou de nada à sua volta.

Sou impelida a seguir o caminho para o meu gabinete, ao invés de continuar para a saída, sem saber bem porquê. Na porta ao lado, parece-me ouvir o mesmo conjunto de sons que pressentira anteriormente, e espreito. A mesma cena, o mesmo amor desenfreado acontece aqui, dois seres humanos à minha frente, penetram-se com a intensidade sôfrega de quem não se ama há milénios.  Saio para o corredor e tento encontrar a linha segura da sacada das janelas para me guiar de volta à segurança da minha sala. Tropeço em algo, desequilibro-me e quase caio sobre um corpo humano sem roupas que se funde em outro corpo aos meus pés no corredor. Tento avançar, mas o chão está coberto de humanos, contorcionistas e brilhantes, como animais aquáticos, que se misturam uns nos outros, gemendo, amando-se. À medida que rompo a custo pelo meio desta inusitada fusão, percepciono o que me parecem ser pacientes, médicos, enfermeiros, em pleno acto de amor abnegado e luxuriante, se é que isso seja possível.

Às vezes temos dificuldade em adaptarmo-nos à realidade, porque ela nos parece tão irreal que é inconcebível ao nosso cérebro atribuir-lhe carácter de verdade. Mas, por muito que me seja difícil, esta é de facto a minha realidade presente.

Quedo-me de olhos postos no céu da noite, costas voltadas para estes corpos, as mãos na cabeça a apertarem as minhas têmporas com força, como costumo fazer sempre que necessito de me concentrar. Sinto uns braços fortes apertarem a minha cintura. O meu primeiro instinto é o de me libertar imediatamente do abraço e levo as minhas mãos ao encontro das que me cingem o corpo. Mas, uma onda de calor tão intenso como o fogo da lareira no Inverno assoma-me dos pés à cabeça. As minhas mãos, ao invés de repelirem o abraço, entrelaçam-se nos dedos que me tocam. “Não posso! Não posso!”, penso, julgando eu que em silêncio. “Claro que pode Doutora, podemos todos, hoje podemos todos!” Esta voz, que me responde ao ouvido, é-me tão familiar… No entanto, parece-me que não deverei tentar encontrar o rosto por detrás das palavras. Homem, mulher, fauno ou bacante, pouco me importa agora. Há algo dentro de mim que queima. Parar é impossível, o único caminho neste momento é amar, deixar fluir o magma quente que corre dentro deste corpo até que o mesmo escorra com a intensidade de mil vulcões. E deixo-me ir, assim, como todos os outros, na mesma luxuria dos sentidos, sobre a luz da lua que entra em azul pelas janelas.

Um frio glaciar faz-me acordar, gelada, sobre os mosaicos verdes do corredor. Acordamos todos, dezenas de seres humanos sem roupas e sem consciência, despertam ledamente da noite anterior. “Lembro-me de tudo, caraças… eles também se devem lembrar”, é o primeiro laivo de assertividade que tenho nessa manhã. Evitando olhar-nos nos olhos, vamos aos tropeções em busca dos nossos rumos, entrando nos gabinetes, percorrendo o corredor apressadamente em direcção à saída.

Não encontrei a minha bata nem as minhas roupas, mas tenho sempre uma t-shirt e umas calças de ganga velhas, no cacifo que mora em frente da minha secretária. É o meu fim de turno, estou a fazer noites. E vou, compassadamente, pelo corredor fora até ao elevador. Evitamos todos olhar-nos nos olhos, mas há uma ligeira tentação que nos impulsiona a levantar as iris, curiosas, de cada vez que que nos cruzamos.

Quando chego a casa deixo-me cair em cima da cama sem me dar ao trabalho de mudar de roupa. Na minha mente estão presentes todas as imagens da noite anterior, como fotogramas dispersos, mas, porém, bastante evidentes. Tento colocar o cérebro a trabalhar em busca da explicação racional para tamanha loucura. Que feitiço foi este que nos libertou das amarras e semeou um desejo de amor desenfreado nos nossos corpos? Não consigo, estou demasiado cansada para isso. Vou fechar os olhos e deixar que Morfeu me leve consigo.

Da porta aberta do meu gabinete vejo a familiar luz da lua bater nas grades das janelas. Hoje não há sombras, como ontem, porque hoje o corredor está iluminado, toda esta ala está iluminada. Vou até à porta e encosto-me à sua ombreira a contemplar os mosaicos, as longas vidraças e o murmúrio dos doentes nas suas salas e dos colegas nos seus gabinetes. Hoje, depois da noite anterior, estamos todos reclusos do receio de nos enfrentar. “Que raio se passou ontem?”, este pergunta que persiste em mim.

            Um dos meus doentes passa no corredor. Cabelos loiros, os caracóis em desalinho, lança-me um sorriso matreiro. E eu retribuo. “Será que foi com ele?” Interrogo-me. Um frio passa-me pela coluna. “Caramba, um doente. Onde é que eu estava com a cabeça?”.

            “Preciso de um café.”, penso, enquanto equaciono os prós e os contras de efectuar todo o percurso até à cafetaria e os encontros e desencontros que irei ter. Lá vou, mais a vergonha do que a medo, cabisbaixa, mãos nos bolsos do vestido, em passo quase de corrida. 

            “Doutora!”, oiço uma voz a chamar. “Doutora!”

            Perante a insistência, não posso deixar de olhar e atirar um breve aceno com o queixo.

            “Doutora, ontem perdeu a sua bata.” E lá está ele, o mesmo paciente de há pouco, com o seu sorriso atrevido a aproximar-se de mim e a estender-me um pedaço de tecido branco amarrotado, que trás debaixo do braço. Aproxima-se do meu ouvido e sussurra para que o ouça “Isto não é uma história sobre luxúria, é uma história sobre o amor!”

Estendo a mão e agradeço o gesto. “De nada”, responde ele e afasta-se.
           
Dei umas sacudidelas vigorosas ao trapo que se assemelhava à minha bata. De um dos bolsos caiu um pequeno papel dobrado em quatro. No meio de confusão da noite de ontem, nem tomara atenção ao recado que o último paciente de me deixara escrito.

Comecei a desembrulhá-lo despreocupadamente, “Que raio de noite a de ontem!”. À medida que vou abrindo a pequena missiva, volto a sentir uma vibração familiar por baixo dos pés. Um tremor, como um murmúrio, em crescendo até ao peito. E depois, como se por decalque da noite anterior, as luzes apagam-se sem mais explicações!

E, com uma clarividência quase divina, lembro-me do nome do paciente que me dera o papel que agora, e ontem, eu seguro na mão: Eros, o nome dele é Eros o deus do Amor!!!

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4/16/2020

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Texto vencedor do desafio de escrita criativa - semana 1

 

autor: Raúl Vieira da Silva

miniconto Raúl Vieira da Silva

PRÓLOGO
 
 
Os pássaros chilreavam, acompanhados do leve restolhar das folhas das árvores agitadas pela brisa que se levantava. Aproveitando a calmaria da noite primaveril, Joana e Pedro passeavam tranquilamente pelo Parque florestal de Monsanto. Tinha sido uma boa ideia o alugar a pequena cabana de madeira, bem no coração do parque, para passarem a primeira semana de férias da Páscoa.
            Tinham tornado o pequeno passeio que faziam após o jantar um hábito saudável de descompressão, contornando o pequeno aldeamento de cabanas onde se encontravam alojados e percorriam o trilho até perto do clube de Ténis de Monsanto, do qual apenas vislumbravam os courts de terra batida vagamente iluminados pela lua cheia que teimava em esconder-se atrás das nuvens.
            Percorriam vagarosamente o traçado sinuoso dos caminhos rústicos enquanto conversavam, aproveitando a modorra nocturna. No entanto, o ambiente calmo que pairava no ar não tardaria a ser subitamente interrompido. Da sombra da noite emergiram sem aviso duas sombras escuras que os agarraram por trás. O emudecimento causado pela surpresa rapidamente se transformou num grito lancinante que ecoou pela noite.
            — Podes gritar à vontade, querida! Ninguém te vai ouvir. — ouviu sussurar ao seu ouvido uma voz áspera, enquanto os braços robustos do desconhecido a agarravam à volta da cintura.
            A seu lado, Pedro era manietado enquanto implorava:
            — Levem tudo o que quiserem, mas deixem-nos em paz. Tenho dinheiro e o telemóvel no bolso.
            — O que é que vocês querem de nós? — gritou Joana. — Por amor de Deus, não temos nada. Somos apenas estudantes…
            Um dos assaltantes impacientou-se:
            — Calem-se os dois! — ordenou, apertando com força o pescoço da rapariga. — Ou aqui a minha amiguinha vai desta para melhor.
            Joana sentiu as mãos do homem revistarem-lhe rapidamente os bolsos retirando-lhe o telemóvel e a carteira e aproveitando a proximidade, apalpou-lhe o seio.
            — Porco! — exclamou, impulsionando-se para trás e pisando-lhe o pé com força.
            O corpulento homem gemeu de dor, agarrando-se ao pé e largando a sua presa. Joana aproveitou a oportunidade e desatou a correr.
            Subitamente, ouviu um estrondo e sentiu o sangue a gelar nas suas veias. Não podia ser…
            Os dois homens, após um minuto de choque e de absoluto silêncio, andavam à sua procura.
            Escondida atrás dos densos arbustos da floresta, o coração incapaz de parar de bater descontroladamente, parou para retomar o fôlego. Procurando manter a calma, tentou analisar friamente as opções que tinha à frente. Percebeu que só lhe restava uma: a luta pela sobrevivência.
Ouviu as suas vozes distantes, trazidas pelo vento.
            — Esconde o corpo do tipo. Eu tenho umas contas a ajustar com a outra.
            — Mas despacha-te. Quanto mais depressa formos embora, melhor.
            O outro tranquilizou o colega, respondendo friamente:
            — Temos tempo! Ainda é cedo!
            Instantaneamente encolheu-se, deitando-se na terra húmida, sentindo o desconhecido a aproximar-se cada vez mais.
            Imóvel, esforçando-se para controlar a respiração, soube que estava perdida quando ouviu passos atrás de si. Sem que tivesse dado por isso, o seu perseguidor tinha dado a volta por detrás dos arbustos e estava agora na sua rectaguarda.
            Desesperada, virou-se. Os olhos do homem brilhavam de satisfação, cruéis, enquanto empunhava a Beretta na sua direcção. Sabia o que se seguiria.
            — Nós não vos queríamos fazer mal. Isto era só um assalto. Mas não nos deixaram outra hipótese. — disse, destravando a arma.
            Era a luta pela vida. Joana não hesitou. Sabia que tinha muito menos força que o seu robusto oponente, ainda para mais estando deitada, e que o assaltante não pensaria duas vezes antes de disparar. Aqueles dois tinham acabado de matar a sangue-frio o seu namorado sem hesitar e iriam de seguida executá-la.
            Tinha que se defender de qualquer maneira. Ganhando impulso, flectiu as pernas, empurrando o homem.
            Pela segunda, um grito ecoou nessa noite. Para espanto de Joana, o homem não caiu ao chão. Na penumbra da noite, Joana não se apercebeu de que se tinha abrigado perigosamente perto de um enorme declive para o vazio. Era tarde demais. O homem desequilibrou-se com o empurrão, desaparecendo na escuridão.
 
 
I
 
Joana acordou coberta de suores frios. Demorou uns minutos a perceber que não estava na pequena cabana em Monsanto onde, cinco anos antes, tinha decidido ir passar um fim-de-semana com o namorado. Estava a salvo em casa. Mas o namorado não tivera essa sorte. Joana ainda hoje não conseguia dormir, consumida pelo sentimento de culpa que a inundava, e quando adormecia, acordava a meio do pesadelo onde revivia cada instante daquela noite.
            Se eu não tivesse fugido… Se lhes tivéssemos dado o dinheiro, eles tinham ido embora e tinha ficado tudo bem.
            Um erro terrível. O veredicto do tribunal tinha desconsiderado a morte do assaltante, absolvendo Joana do crime de homicídio. Legítima defesa, tinha sentenciado solenemente o juiz. Mas Joana continuava a sentir um vazio inexplicável; este pensamento acompanhava-a constantemente nos últimos dois anos desde a fatídica noite. Sentia-se insegura, uma sensação que não conseguia explicar de forma racional: um dos assaltantes tinha morrido e o outro tinha sido apanhado pouco tempo depois e estava no Estabelecimento Prisional de Lisboa, onde ainda permanecia.
            Desde essa altura, tinha reduzido as saídas de casa ao mínimo, vivendo como uma eremita, saindo apenas para frequentar as aulas do último ano do curso de direito, que frequentava na Universidade de Lisboa.
            Uma das amigas, preocupada com o crescente isolamento de Joana, tinha-a convencido recentemente a ir tomar um café nos famosos Pastéis de Belém, mas, para espanto de Joana, não apareceu sozinha. Vinha acompanhada de um rapaz louro de olhos azuis, impecavelmente barbeado, que não deveria ter mais que vinte e sete anos. Inexplicavelmente, sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha, ao cumprimentar o rapaz que lhe era apresentado pela amiga.
            — Joana, é o Gonçalo.
            A conversa fluía à beira-Tejo, entre os três, enquanto caminhavam junto ao Padrão dos Descobrimentos. Joana observava Gonçalo, não conseguindo afastar a sensação de que conhecia o jovem.
 
 
II
 
Nas semanas seguintes, os encontros entre os três sucederam-se. Um almoço, um lanche, uma ida ao cinema. Naquela noite de sábado voltaram a combinar um jantar, optando por um dos restaurantes do Centro Comercial das Amoreiras.
            Joana estava grata à amiga por toda a preocupação. Sentia um enorme apoio por parte da amiga e de Gonçalo, de quem se sentia cada vez mais próxima. Joana sempre fora reservada, mas sentia-se bem perto de Gonçalo. Sentia-se segura. Pensando nisso, não conseguia explicar a primeira sensação instintiva que tivera de desconforto quando foram apresentados. Gonçalo era atencioso, embora Joana não o achasse particularmente culto.
            Sorriu ao recordar o momento em que o conhecera. Tinham decorrido apenas poucas semanas, mas parecia a Joana que poderiam ter passado vários meses. Sentia que conhecia Gonçalo desde sempre.
            Mas de onde? — perguntou a si mesma.
            Por muito que pensasse, não conseguia associar a cara do rapaz a ninguém que conhecesse. Mas sentia que já o conhecia, uma estranha familiaridade. Ela, que sempre fora reservada, quase tímida, sentia-se estranhamente extrovertida ao pé de Gonçalo. Rapidamente, amizade transformou-se em algo mais, um namoro não assumido, mas tácito.
            Olhou para o relógio e sentiu-se impressionada. Já tinham passado mais de três horas desde que tinha chegado às Amoreiras, onde tinham jantado e ido ao cinema.
            — Vou andando para casa. — informou. — Sinto-me cansada e já é tarde.
            — Temos tempo! Ainda é cedo! — disse o rapaz.
            De repente, Joana sentiu o mundo a girar à roda. Aquelas palavras… aquelas frases… já as tinha ouvido anteriormente. Viu-se de novo no parque de Monsanto, naquela sexta-feira à noite. Não! Não podia ser. Não era possível.
            Recordou a noite escura e fria de há cinco anos atrás, em que Pedro não regressara daquilo que seria um inocente passeio pela floresta.
            Estacou imóvel, ao pé da escadaria interior do Centro Comercial.
            — Tu… mas, não é possível! Não pode ser!
            Joana abanava a cabeça, procurando uma explicação racional. Agora percebia a estranha sensação quando conhecera Gonçalo, os arrepios injustificados que sentira. Agora tudo fazia sentido.
            Tinha sido o rapaz que que os tinha assaltado no Parque Florestal de Monsanto.
            Seguiu-se um longo momento de silêncio. Gonçalo fitava-a com os olhos azuis, anteriormente agradáveis, agora frios e reluzentes de determinação. Determinação em apanhá-la; a ponta solta que faltava. Depois de a eliminar, deixaria de haver testemunhas do que se passara naquela noite na floresta.
 
 
III
O Centro Comercial das Amoreiras encontrava-se repleto de pessoas que aproveitavam aquela noite de sábado para fazer compras ou jantar. No entanto, nem o facto de estar num local repleto de pessoas acalmava Joana. Estava paralisada pelo medo, pelo choque, pelo espanto. Um turbilhão de sensações. Os pensamentos sucediam-se na sua mente a uma velocidade estonteante. Aquela frase, a mesma que ouvira na fatídica noite em que o seu namorado fora morto a sangue frio, tinha desencadeado na sua memória toda a sequência de acontecimentos daquela noite.
            — Agora acompanha-me sem fazer barulho. Se tentares alguma coisa, acontece-te o mesmo que ao teu amigo. — avisou.
            — Mas… tu… estás vivo?! — a incredulidade materializou-se na sua cara, substituindo temporariamente o medo que a petrificava.
            O homem devolveu-lhe um sorriso glacial.
            — Tu empurraste-me naquela noite. Caí numa ravina de dez metros.
            Joana cerrou os olhos. As memórias daquela noite materializaram-se na sua cabeça a um ritmo alucinante.
            — Mas, como?
            Não havia uma explicação racional. Joana lembrava-se bem dessa noite; revivera-a vezes sem conta e, continuava sem compreender.
            Matar ou morrer, pensara na altura em que o tinha empurrado para o vazio. Joana não o queria matar. Estava apenas a lutar pela vida; a sua vida. Estava apenas a defender-se. A única saída era empurrá-lo. Infelizmente, a ravina estava mesmo ali ao lado.
            Um acidente. Tinha sido isso. Uma desesperada luta pela vida.
            O assaltante tinha morrido. O corpo tinha sido encontrado na altura. O médico legista que tinha testemunhado no julgamento que absolveu Joana da morte do assaltante tinha garantido que a morte tinha sido provocada pela queda, que lhe tinha fracturado o pescoço.
            — Estou vivo. Como a fénix que renasce das cinzas e volta a voar, eu renasci, neste corpo, para me vingar.
            Um sorriso desenhou-se nos lábios finos do jovem.
            Joana não queria acreditar. O homem por quem se apaixonara era o mesmo que tinha morto. Tinha regressado noutro corpo. Joana não o tinha reconhecido, mas no fundo sentia que sempre o soubera.
            Os arrepios que sentira quando o conhecera estavam, finalmente, explicados.
            Ele tinha-a conduzido até à saída do centro comercial, preparado para voltar a matar a única testemunha do crime.
            Joana tentou fugir desesperadamente. Ele antecipou-lhe os movimentos e agarrou-a antes que ela tivesse oportunidade de fugir. Pela segunda vez na vida, Joana viu a morte aproximar-se de si perigosamente. Chorou ao recordar o namorado, que tinha morrido às mãos do assaltante.
            O mesmo assaltante que está à minha frente. — o pensamento formou-se na sua mente.
            E num instante, agiu. Matar ou morrer.
 
EPÍLOGO
 
Monsanto estava deserto. Os pássaros chilreavam nas copas verdejantes das árvores naquela tarde primaveril. Joana sentou-se junto à cabana de madeira onde tinha pernoitado cinco anos antes.
            Por fim encontrara paz. Já não tinha medo de andar na rua, sentindo-se segura em todo o lado.
            O sol punha-se ao longe, pintando de tons rosados o céu azul. Anoitecia em Lisboa. Determinada, Joana ergueu-se e encaminhou-se para junto do local onde Pedro tinha morrido.
            Ajoelhou-se e retirou uma caixa de veludo do bolso do casaco. Tinha combinado aquele fim-de-semana, há cinco anos atrás, com um propósito que não tinha tido oportunidade de realizar. Emocionada, abriu a caixa que continha a aliança de ouro e enterrou-a no local onde Pedro tinha soltado o último suspiro. 

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