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por Maria da Luz Barros Valeriene,
Ainda não nos conhecemos. Nunca ouviste falar de mim. Por más razões, já me falaram muito de ti. Começo por te pedir desculpa por todo o teu sofrimento, pelas marcas que te estão a cravar no corpo e na alma. Sinto imensa vergonha desta sociedade: diz-se evoluída, democrática e humana, mas não passa de uma sociedade do faz de conta, dá com uma mão e retira com a outra. Confesso-te que me sinto tão desiludida! Acredita, essa desilusão me provoca dolorosas mágoas. Claro que não são tão pungentes como aquelas por que estás a passar! Longe disso! Para o sentir, tinha de atravessar o inferno de que estás a tentar fugir. Nasceste bem depois da Segunda Guerra Mundial. Não vivenciaste os horrores, a carnificina… mas deves ter escutado histórias de terror dessa época. Certamente, ouviste lamentos profundos dos teus familiares, que o vivenciaram e que foram obrigados a viverem na incerteza, com dificuldades e medos. Sempre que os ouvias, respiravas de alívio. Sentias-te uma mulher de sorte! Mais afortunada te sentiste quando o teu país recuperou a independência, após a desintegração da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. A esperança renascia… por isso, planeaste a tua vida: casaste, tiveste filhos, compraste uma casa… Mas no dia 24 de fevereiro a esperança desmoronou-se. A ambição e a sede de poder atacaram. Destruíram as tuas expectativas. Destruíram o teu presente e o teu futuro. Há pouco fui informada que destruíram os teus sonhos: roubaram a vida a um dos teus filhos, não sabes do teu marido e a tua casa está em ruínas. Por isso, foste obrigada, como tantos outros, a esconderes-te numa toca, como fazem os coelhos, para escapar aos cães selvagens que, cobardemente, atacam inocentes. Não imagino como é viver às escuras, sem água e sem comida; não imagino como consegues suportar as dores que se alojaram no teu peito, que, para além de insuportáveis, devem ser indescritíveis! Por essa razão, não te pergunto como te sentes. Como é possível, no século XXI, ainda existir um assassino desta envergadura! Será que é familiar de Adolf Hitler? Sei que é mais um louco que anda à solta e em estado de desespero! Nunca pensei ser testemunha deste retrocesso civilizacional. Eu sei que partir não depende de ti. Depende das distrações das bestas que te vigiam dia e noite, e estão prontos para fazerem tiro ao alvo. Foge o mais depressa que puderes. O lobo solitário, embora esteja convencido de que tem a alcateia controlada, não vai desistir enquanto não destruir o que resta. Não sei quando poderás sair da toca, mas logo que conseguires vem para Portugal. Eu estou aqui para te receber e ajudar. Não te preocupes com as dificuldades linguísticas e de comunicação. Cá nos vamos arranjar. Não tenhas medo, aqui ficas em segurança. Sabes, os portugueses estão sempre prontos a abrirem as portas a quem precisa. Somos solidários. Recebemos conhecidos e desconhecidos de braços abertos. Mas não te esqueças que, para os portugueses, já não és desconhecida. Todos os dias, a todas as horas, ouvimos falar de ti, e da vida sufocante que estás obrigada a fazer. Aguardo-te. Até breve! 5/20/2022 Uma carta aos ucranianospor Isabel Gomes Estou aqui há uns trinta minutos talvez, não sei bem. O meu coração prestes a explodir quase não deixa que a inspiração e a expiração se façam de modo suportável. O medo. É ele que me deixa paralisado debaixo da cama, tendo arrastado comigo o tapete vermelho fino que antes estava ali ao lado. Já ouvi duas explosões, que trouxeram um clarão; agora à distância já nem sei se esse clarão chegou a existir ou se é fruto desta memória que fui buscar ao ano de mil novecentos e setenta e cinco. A minha mãe gritou logo à primeira. Eu estava sentado na cama, à espera da hora de jantar, ou melhor, de pôr a mesa. os deveres da escola já feitos; peguei no livro para o qual uma peça de teatro me tinha despertado e abri-o na página que tinha a dobra marcadora. “O Diário de Anne Frank”, o livro que para sempre me havia de deixar a impressão de ter vivido um pouco do sofrimento de todos os envolvidos naquela época, naquela sinistra guerra. Sinistra aquela, como todas as guerras. Injustas, sem sentido, com efeitos colaterais, bilaterais, trágicos e avassaladores. Depois da segunda explosão já não estava capaz de ler nada, até porque debaixo da cama não há luz que chegue para tal.
Passaram muitos anos sobre esse setenta e cinco do século vinte. No entanto, sempre que na televisão as imagens de destruição material aparecem, revivo todos os momentos e é impossível não sofrer de novo, não pensar nos que passam por esta experiência de não ter chão, de pensar que o mundo se esqueceu de nós e a sensação de que não há como voltar a respirar livremente. Uma guerra, qualquer guerra, é aquele espaço em que nada nem ninguém importa o suficiente para não lhe dar seguimento. Nem o avô que todos os dias vai buscar o pão para os seus netos, ou brinca com eles, ou os leva à escola, nem a mãe que aconchega os filhos na cama depois de jantar, nem o filho que vem com a sua nova família almoçar ao sábado com quem lhe deu as raízes que tem. Não importa também a criança que não entende de onde vêm a violência e a destruição à sua volta, que não sabe o que terá feito de errado para merecer o medo constante. Estou convosco, amigos ucranianos, como se vivesse na vossa pele. por Estefânia Barroso Querida Olena (acho que ainda é assim que se inicia uma carta). Os tempos já não são daqueles que escrevem cartas mas, estranhamente, senti que passar para o papel estas palavras que te quero oferecer seria mais adequado do que escrevê-las como parte do corpo de um e-mail. Utilizar esta forma tão antiga de comunicar faz-me, sabe-se lá porquê, considerar esta minha conversa mais pessoal, mais intimista.
Começo por dizer-te que esta é uma carta que nunca deveria ter de ser escrita. Nunca deveria ter a necessidade de partilhar contigo mais do que alegrias acontecidas na nossa vida, mais do que pequenos acontecimentos do dia a dia, que são insignificantes, mas que queremos partilhar com quem tem um cantinho no nosso coração. Sei que deveria perguntar como estás, perguntar como estão as coisas por aí, mas a verdade é que sei, de antemão, aquilo que me poderias dizer: a dor, o medo, o inferno. Sei que me irias dizer que a guerra não é novidade para ti, que passaste pelo mesmo em 2015 e, por isso, sabes o que custa, sabes o que dói, o difícil que é manter-se vivo nestes tempos desumanos. E sei, porque conheço a tua força e a tua coragem, que irias dizer que não será mais esta guerra que te irá atirar ao chão. Que és uma sobrevivente e que resistirás a mais este revés da fortuna com a garra que te caracteriza. Sei disso tudo e é por isso que tenho certezas acerca da tua coragem e determinação. E é nelas que me foco todos os dias, quando pensamentos mais negativos me assaltam. Não é fácil ouvir nos noticiários que houve mais um ataque a Mariúpol e que vocês continuam a resistir. Por segundos sinto uma onda de pânico invadir-me. E se a tua imagem, a tua fotografia aparecer no meu ecrã como sendo mais uma vítima desta guerra absurda? São pensamentos fugazes, digo-o já, que afugento, focando-me na grande mulher que tu és e na certeza que o destino não seria tão cruel que te arrancasse assim de todos aqueles que te amam. E é por tudo isto que fica acima mencionado que quero falar-te do que se tem passado aqui deste lado da Europa: Quero que saibas que o teu pequeno Dimitrov está cheio de vitalidade e saúde. E posso dizer-te que desde que conseguimos que trouxessem da Ucrânia, o pequeno “Sobaka” (o que ri quando percebi que o nome dele era apenas “cão”) o olhar dele ganhou outro brilho. O Dimitrov já iniciou as aulas por cá e já vai pronunciando algumas palavras em português. Não posso dizer que a comunicação seja fácil mas, com algum esforço, lá nos vamos entendendo. Passamos momentos incríveis, antes de deitar, quando conto a história da noite (a ajuda do tradutor tem sido indispensável!) Quero que saibas que aqui em Portugal é primavera, que os campos estão cobertos de cores vivas e bonitas: tudo está verde e viçoso. As árvores já ostentam orgulhosamente flores coloridas que darão, mais tarde, saborosos frutos. As andorinhas já regressaram ao país e voam alegremente por estes céus límpidos. Posso dizer-te, também, que a temperatura está fantástica e sentimo-nos num completo momento de verão. As regras para combater a pandemia foram suavizadas e sentimos, por cá, que alguma liberdade foi reconquistada. Sempre fui de opinião que o renascer da Natureza representava a possibilidade de renascimento da vida e do mundo. É como se a primavera nos trouxesse a possibilidade de “um novo dia”, diferente, mais claro, melhor. Gosto de acreditar nisso e essa crença, habitualmente, produz resultados positivos. É exatamente isso que sinto nesse momento. Não te conto tudo isto para servir de contraponto à escuridão e tristeza que reina, neste momento, na tua cidade e no teu país. Muito pelo contrário. Falo dessa primavera com sabor de verão, falo das cores e da alegria para te ajudar a lembrar que, bem perto de vocês, existe um mundo bonito e carregado de boas energias. Falo deste lado da Europa, falo do sorriso do teu filho quando brinca com o teu cão, falo da primavera, para que possas ter a certeza de que o mundo está a girar da forma certa por cá. Quero povoar a tua mente de imagens belas e felizes, coloridas, carregadas de gargalhadas e de cantos felizes. Quero que saibas que procuramos carregar os nossos dias de boas energias que enviamos em seguida, para vocês. Sei que, neste momento, estarás a sorrir com as imagens que povoaram a tua mente enquanto lias esta carta. Por alguns breves momentos terei conseguido fazer-te esquecer a guerra, a tristeza, a morte, o sofrimento. Era esse o meu objetivo. O bem vencerá e em breve estaremos a beber um café, numa esplanada com vista para a praia, vendo o Dimitrov brincar na areia com o Sobaka. Até lá. E que esse “até lá” seja breve. |
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Novembro 2022
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5/23/2022
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