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7/12/2022

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As minhas viagens

 
por Maria da Luz Barros
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Quando aceitei fazer o curso de doutoramento em Valladolid, aconselhada pelo meu orientador, vi-me obrigada, semanalmente, a viajar de comboio, durante dois anos letivos, porque me recusara a conduzir. Foram viagens muito cansativas, por vezes desmoralizadoras. Às sete da tarde, de cada terça feira, entrava no comboio internacional, chegando ao meu destino perto das duas da madrugada, hora local; às três da manhã, de cada sexta feira, regressava a casa. Durante essas viagens, cruzei-me com muita gente. Uns mais simpáticos do que outros. Uns mais atrevidos do que outros. De janeiro a junho, muitas vezes, viajei sozinha na cabine. Entre julho e agosto, os passageiros amontoavam-se, sendo na sua maioria emigrantes portugueses: enquanto uns vinham passar férias com a família a Portugal, outros já regressavam a França para retomar o trabalho.
Apanhei alguns sustos durante as viagens. Houve noites em que senti medo. Os olhares dos emigrantes clandestinos que se escondiam das autoridades na cabine onde viajava intimidavam-me. Cheguei a ter medo de um dia ser refém. Numa noite, quando me sentei no meu lugar, em frente tinha um homem de tez escura, quase cor de azeitona, com o dedo indicador a fazer-me sinal para não gritar. Não entendi, mas obedeci. Com a pasta de couro castanha e a bolsa, onde guardava os documentos e algum dinheiro, a fazerem de almofada e o casaco de cobertor, semicerrei os olhos, evitando que ele tentasse comunicar comigo. O silêncio era medonho. Apenas se ouviam as rodas de ferro a pisar os carris. Pouco antes de atravessar a fronteira, apercebi-me de que estava a encobrir um crime: havia alguém escondido debaixo do meu banco; o respirar descontinuado assim me fizera crer. Fingindo que desapertava as botas, espreitei e vi ali uma criança, estendida como um peixe-espada-preto, não se mexeu e arregalou um dos olhos quando se apercebeu de que fora descoberta. Nesse momento, o bater do meu coração acelerou de tal forma que temi que ele saísse pela garganta.
Quando o comboio parou, como era habitual fazer para a identificação dos passageiros, fiquei sem saber como reagir. Num repente, sentei-me. No mesmo instante, o homem saiu da cabine sem dizer uma palavra ou fazer um gesto. A aproximação de vozes descansou-me um pouco. Abri a porta da cabine para que aquela inocente pudesse respirar melhor. Saí para o corredor e debrucei-me sobre o corrimão, junto das janelas, tentando perceber a estratégia do homem que abandonara a criança. Nem sequer descobri a sua sombra. A subjugação daquela criança preocupou-me. Antes de abandonar o comboio tinha de denunciar o caso. Entretanto, o comboio começou a deslizar sobre os carris. Felizmente, os polícias não passaram por ali. A cabine não foi vasculhada. Dirigia-me para o meu lugar quando o homem entrou na cabine, chamou o menino, em tom de desespero, e saiu a passos largos dali. Nunca mais os vi.
Durante essas viagens, ouvi mais lamentos do que manifestações de alegria. Assisti a prisões, a discussões, a agressões, a desgraças. Num dia de outono, ao alvorecer, uma mulher atirou-se para debaixo do comboio, em Santa Comba Dão. Fomos proibidos de sair para o exterior. Mas, claro, ninguém ficou sentado nas cabines. As informações, chegavam a conta gotas. A curiosidade aumentava a cada minuto que passava. Todos estávamos ansiosos para chegar a casa. Foi na carruagem restaurante, onde fui comer uma sandes de queijo e tomar um café, que me informaram do que tinha acontecido; e que o comboio só podia arrancar depois da perícia policial e da visita do médico legista.  Resignei-me. Regressei ao meu lugar, com a intenção de começar a ler um livro que me tinham oferecido sobre a importância da água na Idade Média. Ao pousar a bolsa no banco, reparei que havia um papel branco em cima do meu casaco. Fiquei irritada com o imbecil que havia feito do meu agasalho um caixote de lixo. «Gente pouco civilizada!», pensei. Corri para a porta, na tentativa de apanhar quem não teve pejo de cometer aquele gesto de pouca educação. Quando decidi atirá-lo para o lixo, verifiquei que estava dobrado em quatro. Estranhei esse facto. Desdobrei-o. Para minha surpresa, tratava-se de um bilhete com um recado, ou talvez uma ameaça.
 
«Não gostei do seu olhar. Achei que foi atrevido. Não me conhece para me lançar um olhar de cobra venenosa. Fê-lo com desdém! Que audácia! Gosta de correr riscos? Aconselho-a a que, no futuro, tenha mais cuidado. Olhe de frente para as pessoas e sem medo. Vou ficar vigilante.»
 
A assinatura era ilegível, penso que o fizeram de propósito. O texto estava escrito numa caligrafia bonita e num português correto. Voltei a atravessar duas carruagens para chegar à carruagem restaurante, para, disfarçadamente, conseguir identificar o autor daquele texto sem sentido. Porém, não tive a capacidade de identificar o autor daquele bilhete. Ninguém me pareceu suspeito. Seria um simples engano? Apesar das muitas perguntas que fiz a mim mesma, não obtive respostas. A preocupação acompanhou-me o resto da viagem. A apreensão só desapareceu quando saí do comboio em Valladolid. Contudo, continuei a olhar para todos os lados…
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