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6/13/2022

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Marca irreversível

 
por Maria da Luz Barros
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Quando pela primeira vez visitei uma cidade senti-me atordoada com a panóplia de ocorrências a acontecer em simultâneo. Tive imensas dificuldades em abarcar todo o ambiente em que me vi envolvida. A confusão era total. Na aldeia onde morava os transportes particulares eram feitos por meia dúzia de automóveis de gente com possibilidades económicas e as demais pessoas andavam em camionetas e, em casos de urgência, em táxis. Ali, o trânsito era tão intenso que não dava para contar os automóveis, como faziam as crianças da minha aldeia.
Embasbacada, encostei-me à parede de um prédio que quase chegava ao céu e que somente conhecia dos poucos filmes que via. Sentindo o meu coração a pular dentro do peito, pus a mão sobre ele na tentativa de o acalmar. Ali fiquei à espera do nada. Temia perder-me. Para mim as ruas eram todas iguais. O som das vozes e das buzinas dos carros deixava-me aturdida. Uma das coisas que me incomodou foi a quantidade de ambulâncias que passava, com toque de grande desespero. Olhei à minha volta e apercebi-me que só eu é que estava constrangida. O frenesim dos transeuntes continuou indiferente ao que acontecia. Ninguém cumprimentava ninguém! Raramente se entreolhavam.
Depois de testemunhar aquelas cenas tristes, disse para mim: «Que bom é viver na minha terra! É verdade que nos falta imensa coisa, mas é um sossego! Todos se saúdam. Choramos e sorrimos uns com os outros. Esta gente vai endoidecer rapidamente.»
Decorria o mês de outubro. Os sinos de uma das muitas igrejas da cidade bateram a oito da manhã. O dia amanhecera envolto num denso nevoeiro, como era habitual acontecer naquela cidade, cercada pelo rio e pelo mar. O frio atacava sem dó nem piedade. As fisionomias passantes demonstravam-no bem. Os casacos de lã e os anoraques saíram à rua — para quem os tinha, claro! — , bem como as echarpes e as luvas.
Na tentativa de perder o medo, fui descendo a rua principal para apreciar as lojas, quando me deparei com um cenário dramático que me provocou uma enorme revolta interior. Quase incontrolável. Só me controlei porque tive medo de ser espancada ou até raptada. A pessoa que conduzia o furgão bege escuro e a sua acompanhante tinham um ar de maléfico nos seus olhares. Amedrontavam.
Boquiaberta, porque não queria acreditar no que acabava de presenciar,  a mulher saiu do transporte e deixou uma criança, teria cinco ou seis anos de idade, sentada no passeio sobre um pedaço de cartão e colocou, na sua frente, um copo de plástico —  depósito para as esmolas.  Aquele menino tinha olhos bonitos, castanhos, quase da cor da sua pele, mas o seu olhar mostrava uma profunda tristeza. Mal conseguia falar com o frio. Os seus lábios lilases tremiam. Os seus pés enegrecidos e roxos chamavam a atenção de alguns, daqueles que raramente iam à cidade, porque os demais já não olhavam. Percebi que se tinham habituado àquela imagem. Durante os minutos que ali estive a pensar no que devia ou não fazer, ouvi uma mulher a dizer à outra:
— Disto, há mais. Há muitos mais. Se desceres a rua vais encontrar pelo menos mais três crianças… são postas em postos estratégicos. Os pais alugam-nas a uma cambada de malandros e exploradores, fazem disto a sua profissão.
— Alguém devia fazer alguma coisa por estas crianças, coitadinhas… — respondeu a outra.
Para minha estupefação as pessoas encaravam a situação como sendo normal: comentavam, mas não reagiam; não demonstravam grande constrangimento. Pensei: «Na minha terra vivem mais pobres do que remediados, mas nenhum deixava que isto acontecesse. Era imediatamente acolhido e tratavam-lhe do corpo e da alma».
Estas situações martelaram na minha cabeça durante anos e que ainda hoje me enchem de amargura. O facto de as autoridades permitirem que aquelas situações ocorressem, fez-me desacreditar nelas; ao contrário do que acontecia nos pequenos lugares, na cidade elas passavam com frequência por perto. Não podiam dizer que não sabiam.
Ninguém protestava contra a falta de humanidade. As crianças estavam a ser exploradas por gente desprezível. Era verdade que os tempos eram de miséria e de fome, mas os pais não deviam sujeitar os seus filhos a tanto sofrimento! No regresso a casa repeti, vezes sem conta, para mim mesma: «Nunca irei viver num lugar assim. Na minha terra não há tantas coisas bonitas, nem cinema, nem museus…, mas há mais bondade, mais solidariedade. Há sempre alguém que ajuda. Até as crianças abandonadas são acolhidas…»
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