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Por Rafaela Lacerda aPara sempre, aqui estou. Rodeada de nada. Encarcerada na liberdade fajuta que me impõem. Limpa há três meses. «Três meses, que orgulho», dizem os demais. Orgulho de quê? Deixam a comida, medem a tensão, dão-me os comprimidos. Drogas para substituir drogas. Estas, legais. Aprovadas. Bem vistas aos olhos das mentes mirradas de preconceito. Horas de ir passear. Lá vamos nós, todos os cordeirinhos em fila organizada. Lindo jardim com vista para o mar lá ao fundo. Lindo jardim bem murado. As heras disfarçam a prisão. Refeições certas, a horas certas, com as regras certas. Para quem as faz? Para quem as cumpre? «O internamento é voluntário, a reabilitação é voluntária.» «Que bom teres escolhido este caminho». Aceno e sorrio, como dizem no estrangeiro. Seja feita a sua vontade. «Tens muita sorte em estares aqui. Estas reabilitações são tão caras.» Continuo a acenar e a sorrir. Que mais há a fazer? Esperar. Um mês, um ano? «Não sabemos, depende da resposta do organismo.» Pergunto-lho todos os dias, não responde, o organismo. Não sei se timidez ou má educação. Dependerá do ponto de vista, decerto. Horas de ir fazer a sesta. «Não tenho sono.» «Nós damos uma ajuda.» «Posso ficar aqui?» «No jardim?» «Sim.» «Sozinha? Não me parece prudente.» «Aqui não há drogas, não é? Acho que a relva e os plátanos são inofensivos, não são, doutor?» Tento o gracejo, o semblante não se altera. «Não prefere ir para a sala de pintura? Ou para a sala de música?» «Não gosto de pintar. Não sei tocar nenhum instrumento. Gostava mesmo era de ficar aqui. Não há perigo. Não vou fugir, não é? Temos um muro de três metros que dá para uma falésia. Lá em baixo só mar e rochas.» Hesita. «Sim, acho que não há problema. Vou pedir à enfermeira para vir tomar conta de si.» «Já sou crescidinha. Só quero ficar a ver o mar. Acalma-me.» «Está nervosa? Vamos medir a tensão.» Tem de se escolher tão bem as palavras... «Não, não é isso. Se calhar não me expressei bem. Gosto de ver o mar. Dá-me ainda mais serenidade. Sinto-me... feliz.» Eles gostam sempre de ouvir a palavra feliz. Incha-os de orgulho em como estão a fazer o trabalho como deve ser. «Muito bem. Então vai ficar aqui a passear. Sente-se, olhe para o mar, descanse. Se quiser dormir, chame, vá ter connosco. Esteja à vontade. Isto é tudo para seu bem.» «Sim, sim. Sei disso, claro. Obrigada.» «Ora essa. O bem-estar dos nossos pacientes é a prioridade desta clínica e de todos nós que aqui trabalhamos. Bom descanso.» «Obrigada.» Enfim, a conversa de merda acaba. Deambulo pelo jardim. Já o conheço de cor. Quase um ano a andarilhar pelos mesmos recantos. «Faltam dois meses. E depois volta à sua vida normal, à sua...» À minha quê? O que é a minha vida normal? Farejar as ruas, ávida por um grama de pó? E como é que se paga? «Não tenho mais nada.» O carro do pai, o anel da mãe, o colar da avó. Despediram a empregada. Nunca lhe pedi desculpa. «Não tenho mais nada, mas eu pago, eu...» «Pagas com o corpinho, giraça.» E pagava. O que quisessem. Até se lambuzarem. Tudo por um grama de pó, tudo para ter tudo e deixar de sentir o nada. Apanho uma flor. Amarela, como o sol que se impõe e esconde todas as estrelas que tentem brilhar. Como o pó. Acerco-me do muro. As florezinhas tímidas da trepadeira acenam-me com braços ondeantes. Ouve-se o mar a chapar na rocha. Ouvem-se os respingos a trepar o muro do lado de fora. Afago uma flor roxa, escancarada de beleza, num «olhem para mim» insinuante. Mexo-lhe e vejo o mar. Como? Afasto-a. O buraco maior. Um tijolo caiu. Mexo mais. Outro tijolo. E, quanto mais mexo, mais os tijolos se soltam. Já consigo pôr a cabeça. O mar, lá ao fundo, chama o meu nome. Mais um tijolo, e outro, os ombros já passam. Estou debruçada, pernas suspensas, os respingos na cara. Pareço livre. Os chinelos caem. «Anda», seduz-me a onda. Empurro o muro, do lado de fora. As duas mãos ao mesmo tempo. A anca passa. Voo. «Espera por mim», peço à onda fujona. Ela espera. Vou ao seu encontro. Cumprimenta-me com um beijo salgado. Aconchego-me no embalo. Fico quietinha ao seu colo. Adormeço. A onda deita-me numa caminha de algas. Tão confortável. Aqui fico. Aqui estou. Para sempre.
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Novembro 2022
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