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por Vandunen Yanagui Seis da manhã. Já ecoam pelas ruas os sons dos carros e da labuta dos ofícios matutinos. Mas nem os seus passos em corrida nem qualquer outro som chegam aos ouvidos de Inês. Nos ouvidos leva a sua música preferida para companhia do seu jogging matinal. Na verdade, ela já se encontra em plena hora de trabalho, na ronda matinal ao bairro, levando os seus olhos sempre atenciosamente vigilantes, à procura de algo fora do normal.
Os trinta minutos que passaram obrigam-na a voltar para casa, e o suor que traz no corpo a tomar um banho. Ela movimenta-se no seu pequeno apartamento metodicamente, ao som do silêncio que a ajuda a organizar o resto do dia de trabalho. Deixa cair a toalha no chão antes de sair da casa de banho, e transporta a nudez do seu corpo até ao quarto, onde veste a roupa interior, depois uns jeans e a camisa branca. Abre a última gaveta e tira o colete, pega na arma, verifica o carregador, a segurança e coloca-a no coldre junto ao flanco direto. Tira do cabide um blazer de tons azuis, saca a escova de dentro de um cesto de cima da cómoda e para junto ao espelho para se pentear. Por fim perfuma-se, apenas porque sim. A sua praticidade e os seus colegas não merecem melhor atenção. Abre porta de casa e, agora sim, sente o frio da manhã. Ainda mal via o vapor da sua respiração subir pelo ar quando o telemóvel tocou. “Estás pronta para mais um dia?” Ouviu-se do outro lado. - Bom dia para ti também, Juan! - Desculpa, Inês. Não dormi a noite toda! É hoje que o apanhamos! - Sim! Talvez seja hoje! Mas primeiro eu tenho… - Olha, estou à tua espera na esquina da estação, sigo dez metros atrás de ti. Inês sabia que hoje não seria o dia de concluir a sua missão, pelo contrário, uma cólera silenciosa corria pela sua consciência e orgulho, pois hoje seria o dia de abandonar aquela missão e, talvez, no pior dos cenários, abandonar o emprego por que tanto lutou. As horas obrigaram-na a deixar aquele pensamento para depois. Tinha que apanhar o comboio das sete na estação de Coslada, onde ela e o colega sincronizariam o resto do dia com o indivíduo que seguiam há mais de seis meses, Caim. Ele era a razão da raiva de Inês, uma agente da Interpol com mais de cinco anos de trabalho no terreno, que durante esta missão se deixou levar pelos olhos meigos de Caim. Ela sabia que deveria ter abandonado a missão logo que estabeleceu o primeiro contacto visual. A garganta secou-lhe e um súbito calor correu-lhe pelo corpo, como se sentisse as mãos fortes do inimigo a percorrê-lo. Caim reparou nela passada uma semana, quando gentilmente cedeu o seu lugar no comboio para ela se sentar, lugar esse que passou a ser o de sempre, junto à janela, de costas para o sentido do comboio. Caim, invariavelmente, passou a sentar-se de frente para ela, em qualquer lugar que permitisse o contacto visual com Inês. Mas hoje, a recordação da noite do passado sábado apodera-se de Inês. A saída noturna com uma amiga a uma discoteca madrilena levou-a a esbarrar com Caim na pista de dança. Sem dizerem uma palavra, mergulhando o ritmo da música, isolaram-se debaixo dos fumos, das luzes, dos lasers e da escuridão intermitente. Beijaram-se como se fosse o único beijo possível nesta vida. A noite terminara debaixo dos lençóis, numa cama de hotel. Corpos despidos, colados e suados. Uma noite inconsequente e louca, que deixou a consciência de Inês revoltada e muda. A chamada no auricular despertou-a: “entrou”. Levantou a cabeça e olhou para Caim, que estranhamente se sentou num lugar mais perto da porta. Trazia um semblante carregado, testa franzida, mas não conseguiu evitar um olhar para Inês, acompanhado com um sorriso triste. O comboio começara a marcha, que deveria levar trinta minutos até ao destino. Inês reparou que Caim trazia um casaco um tanto grande e comprido para o dia que se fazia sentir. Tão comprido quanto a indiferença que lhe transmitia e que estranhamente a fazia arrepiar. Ouve-se o anúncio da próxima estação a sair do altifalante da carruagem. Embora ela saiba que a estação de saída de Caim é a última, algo a faz levantar os olhos e fixá-los nele. Ela vê-o a baixar-se antes de se levantar, como se deixasse algo no chão. Ao erguer-se, Caim olha longamente para Inês, que percebe angústia no olhar e o brilho de uma lágrima a cair. Ele levanta a mão direita, entre o polegar e o indicador mostra-lhe um bilhete, seguidamente entala-o entre a estrutura e a almofada do banco do comboio. A porta abre-se e ele sai. “Inês, ele saiu!”, ouviu o colega chamá-la à atenção pelo auricular. Ela levanta-se rapidamente, sem conseguir evitar o fecho das portas, onde fica parada e vê Caim desaparecer da plataforma. Ela agarra no bilhete, abre e gela. Num segundo, percebe o que se seguirá, o desenho das letras hebraicas que toda a vida a seduziram e o vocabulário que lhe adoçava a boca fazem-na perder o fôlego e azedar a boca. “Inês! O que se passa?”, ouviu. Ela apenas teve tempo para levantar o braço e mostrar o bilhete ao colega. “O bilhete diz: Alá é grande!” Ocorreram em simultâneo vários atentados terroristas na rede ferroviária de Madrid. Várias estações sofreram atentados, entre as quais a estação principal terminal de Atocha. Caim deixara quatro explosivos no comboio. Inês e o seu colega foram duas das 193 vítimas mortais. Os feridos foram 2050, naquele fatídico 11 de março de 2004. Your comment will be posted after it is approved.
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Novembro 2022
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7/26/2022
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