Contacte-nos
92 7080159
Contacte-nos
LabE | Escrita Criativa
  • Formação
  • Recursos
  • Artigos
  • Clube de Escritores
  • Formação
  • Recursos
  • Artigos
  • Clube de Escritores

Junte-se ao
Clube de Escritores
.

Participe nos desafios de escrita criativa

Quero fazer parte »
Section divider type: triangleAsym -- position: bottom

6/13/2022

0 Comentários

Marca irreversível

 
por Maria da Luz Barros
Imagem
Quando pela primeira vez visitei uma cidade senti-me atordoada com a panóplia de ocorrências a acontecer em simultâneo. Tive imensas dificuldades em abarcar todo o ambiente em que me vi envolvida. A confusão era total. Na aldeia onde morava os transportes particulares eram feitos por meia dúzia de automóveis de gente com possibilidades económicas e as demais pessoas andavam em camionetas e, em casos de urgência, em táxis. Ali, o trânsito era tão intenso que não dava para contar os automóveis, como faziam as crianças da minha aldeia.
Embasbacada, encostei-me à parede de um prédio que quase chegava ao céu e que somente conhecia dos poucos filmes que via. Sentindo o meu coração a pular dentro do peito, pus a mão sobre ele na tentativa de o acalmar. Ali fiquei à espera do nada. Temia perder-me. Para mim as ruas eram todas iguais. O som das vozes e das buzinas dos carros deixava-me aturdida. Uma das coisas que me incomodou foi a quantidade de ambulâncias que passava, com toque de grande desespero. Olhei à minha volta e apercebi-me que só eu é que estava constrangida. O frenesim dos transeuntes continuou indiferente ao que acontecia. Ninguém cumprimentava ninguém! Raramente se entreolhavam.
Depois de testemunhar aquelas cenas tristes, disse para mim: «Que bom é viver na minha terra! É verdade que nos falta imensa coisa, mas é um sossego! Todos se saúdam. Choramos e sorrimos uns com os outros. Esta gente vai endoidecer rapidamente.»
Decorria o mês de outubro. Os sinos de uma das muitas igrejas da cidade bateram a oito da manhã. O dia amanhecera envolto num denso nevoeiro, como era habitual acontecer naquela cidade, cercada pelo rio e pelo mar. O frio atacava sem dó nem piedade. As fisionomias passantes demonstravam-no bem. Os casacos de lã e os anoraques saíram à rua — para quem os tinha, claro! — , bem como as echarpes e as luvas.
Na tentativa de perder o medo, fui descendo a rua principal para apreciar as lojas, quando me deparei com um cenário dramático que me provocou uma enorme revolta interior. Quase incontrolável. Só me controlei porque tive medo de ser espancada ou até raptada. A pessoa que conduzia o furgão bege escuro e a sua acompanhante tinham um ar de maléfico nos seus olhares. Amedrontavam.
Boquiaberta, porque não queria acreditar no que acabava de presenciar,  a mulher saiu do transporte e deixou uma criança, teria cinco ou seis anos de idade, sentada no passeio sobre um pedaço de cartão e colocou, na sua frente, um copo de plástico —  depósito para as esmolas.  Aquele menino tinha olhos bonitos, castanhos, quase da cor da sua pele, mas o seu olhar mostrava uma profunda tristeza. Mal conseguia falar com o frio. Os seus lábios lilases tremiam. Os seus pés enegrecidos e roxos chamavam a atenção de alguns, daqueles que raramente iam à cidade, porque os demais já não olhavam. Percebi que se tinham habituado àquela imagem. Durante os minutos que ali estive a pensar no que devia ou não fazer, ouvi uma mulher a dizer à outra:
— Disto, há mais. Há muitos mais. Se desceres a rua vais encontrar pelo menos mais três crianças… são postas em postos estratégicos. Os pais alugam-nas a uma cambada de malandros e exploradores, fazem disto a sua profissão.
— Alguém devia fazer alguma coisa por estas crianças, coitadinhas… — respondeu a outra.
Para minha estupefação as pessoas encaravam a situação como sendo normal: comentavam, mas não reagiam; não demonstravam grande constrangimento. Pensei: «Na minha terra vivem mais pobres do que remediados, mas nenhum deixava que isto acontecesse. Era imediatamente acolhido e tratavam-lhe do corpo e da alma».
Estas situações martelaram na minha cabeça durante anos e que ainda hoje me enchem de amargura. O facto de as autoridades permitirem que aquelas situações ocorressem, fez-me desacreditar nelas; ao contrário do que acontecia nos pequenos lugares, na cidade elas passavam com frequência por perto. Não podiam dizer que não sabiam.
Ninguém protestava contra a falta de humanidade. As crianças estavam a ser exploradas por gente desprezível. Era verdade que os tempos eram de miséria e de fome, mas os pais não deviam sujeitar os seus filhos a tanto sofrimento! No regresso a casa repeti, vezes sem conta, para mim mesma: «Nunca irei viver num lugar assim. Na minha terra não há tantas coisas bonitas, nem cinema, nem museus…, mas há mais bondade, mais solidariedade. Há sempre alguém que ajuda. Até as crianças abandonadas são acolhidas…»
0 Comentários

6/6/2022

0 Comentários

Chuvas, preconceitos e legados

 
por Nilton Marlúcio de Arruda
Imagem

Caiu um aguaceiro tão forte naquela tarde que fiquei imóvel por longos minutos. Não conseguia, sequer, sair do abrigo em que me estacionei na paragem do autocarro 503, que vai de Rio Tinto a Timbaúba. Por força das coincidências, aquele temporal me atravessou o caminho quando estava eu exatamente de passagem pela Rua dos Aguaceiros. Enquanto buscava no horizonte uma fresta de trégua em forma de sol – ainda que tímido -, vi que dois jovens – um casal, certamente - vinham em minha direção, no lado oposto da calçada, em passos lentos como costumam andar miúdos enamorados. Já não chovia neste momento em que aquelas pernas saltavam em câmera lenta sobre os restos de água que faziam espelhos sobre o chão. Aos primeiros sinais de novas gotas vindas do céu, no entanto, a menina tratou logo de abrir o seu guarda-chuva. E se protegeu como se deve. Mas, deixou de fora o gajo que permanecia ao seu lado, exposto aos pingos grossos e às rajadas de um vento lateral. Juntar a sua mão direita às mãos dela foi o único movimento de aproximação dos corpos sob o novo temporal que já desabava sobre as nossas cabeças. Eu, entretanto, permanecia sob a proteção da paragem coletiva. - Não são namorados! De certeza, não estão a namorar! – Gritou uma voz debruçada sobre a janela do número 539. - Ainda não, pois! Há muita timidez naquela cena. É começo de namoro. – Respondeu, sem ser questionada e em outra gritaria, uma senhora que assistia a tudo no edifício em frente. Não sei quem estaria certa naquelas deduções precipitadamente românticas. A sentença da segunda observadora parecia ganhar a minha concordância. Afinal, os encontros de casais em início de relação são marcados por indecisões, distâncias e poucas intimidades... tipo as marcações de um palco de peça teatral. De forma mais espontânea, talvez. - Casados! São já marido e mulher. Aposto todas as minhas fichas! Foi a sentença de um senhor que chegou à pressa e bastante ensopado pela chuva àquela paragem do 503. E, ainda, fez questão de disparar uma última certeza: “casamentos acabam com os namoros”.
Confesso que já havia escutado algo semelhante. Afinal, nem todo o namoro acaba em casamento, mas, fatalmente, todos os casamentos acabam com as delícias do namoro. Pela comodidade, tornam-se vítimas da rotina pesada que a realidade impõe aos casais, por conta do despir das máscaras e das formalidades dos tempos de conquista. Na mesma medida em que continuam os mexericos e as suposições o casal avança em nossa direção. Num certo trecho, a miúda sob o guarda-chuva sai da proteção. Ele, porém, continua às gotas. Molham-se ambos. Imediatamente, novas críticas embarcam nas mentes e saltam das bocas dos observadores. - Brigaram! Era suposto, pois. A rapariga deixou o gajo à chuva e ele deve ter reclamado. Pronto! Agora, ficam os dois a ponto de uma constipação. – Disparou uma terceira moradora na portaria do seu prédio no número 543. Assim, fui deixando me levar pelas críticas maldosas... E, ainda pior: me vi tirando as próprias conclusões. Se a menina, por timidez, não ofereceu abrigo ao rapaz, é um sinal de que está apaixonada. Teme, talvez, perder o controlo após uma aproximação. Mas, e se forem apenas bons amigos? - Que se passa, pá? Um amigo de verdade não abandona o outro em um aguaceiro desses. – Irritou-se o varredor de ruas, com a vassoura em riste. E fiquei a pensar num final para aquela cena. Bonita, por sinal, mas cheia de conotações. Afinal: o que os nossos olhos não veem, a gente preconceituosamente, imagina... De repente, o casal parou e se olhou frente a frente. Os efeitos da chuva sobre os cabelos foram reveladores: são duas meninas. Uau! Duas raparigas. Nada de casal. Quer dizer: pode ser um casal... E o mais intrigante era a perceptível preocupação delas com o objeto que traziam às mãos. Da paragem, de tão perto, já era possível ouvir a conversa entra as duas. - Será que molhou? – Perguntou uma delas. - Se calhar... – Respondeu a outra a conferir o vasilhame de vidro que protegia com todo o cuidado do mundo. - Nada! Graças a Deus! E aos nossos olhos curiosos, explicaram as duas ao mesmo tempo: - Cinzas. São as cinzas do nosso pai...
0 Comentários

6/1/2022

0 Comentários

O castigo vem a galope

 
por Simone Mourão
Imagem
Naquela altura, eu contava uns doze anos de idade, atirava pedras nos telhados dos vizinhos e explorava, junto com os garotos da minha rua, casas abandonadas. Por falar no assunto, certo dia, metemos o nariz em algo desagradável e inesperado. Um cadáver de ser humano. O recém-falecido jazia no meio dos restos da vivenda amarelada carcomida pelo tempo. «Está morto, de fresco!». Disse-nos o nosso amigo de pensamento mais ágil, o Quicas. Pelos vistos, também era especialista em cadáveres e nem sabíamos. O bigfoot, o irmão mais novo do Quicas, fora o único a correr assustado, valeram-lhe os seus enormes pés. Os outros três e eu, cujas alcunhas não ouso partilhar, permanecemos in loco, a prosseguir com as investigações. Nunca soubemos de quem se tratava, mas o feito heróico restou escrito na história do bairro. Avisámos o Sr. Matos, o repórter, e o meu pai, Comandante Andrade, Oficial da Marinha Portuguesa. No final do dia, a aventura circulava como notícia mais importante do telejornal local, em horário nobre. Demos entrevistas sujos de lama e eufóricos, conforme o status de mini detetives descobridores de defuntos. Teríamos feito carreira como repórteres investigativos, mas construir fama às custas daquela pobre alma rendeu-nos, sobretudo, castigo. É, amigo… “crie fama e deite na cama!”. Quando aparecia uma casa vandalizada, os culpados tinham nome e sobrenome. Logo o pensamento e os chinelos incidiam sobre os nossos ombros. E olhe, custava-nos a pele provar o contrário. Mas isso agora não importa, transformou-se em lenda no meu arquivo de infância. O que interessa mesmo é uma das lições mais importantes, “a” lição. Foi num dia, bendito. Decidi desobedecer por completo os conselhos maternos. Até então, eu era um menino obediente e bem-comportado. Quer dizer, mais ou menos. Se houve algo semelhante antes disso, esqueci-me. Por vezes, penso, desenvolvi amnésia seletiva, porque foram muitos os capítulos apagados do manual "como sobreviver às traquinices de menino".
Recordo-me da chuva torrencial. O meu pai estava sempre a viajar a trabalho. Duas das vezes, seria por mais tempo. Fomos também, eu e a mãe. Na última, antes de retornarmos a Portugal, carregámos a casa às costas e saltámos da Ásia para a América do Sul. Não deu outra, meus tímpanos adquiriram resistência às trovoadas. E os pulmões também. Desembarcámos em terra brasilis. Era para ficarmos um ano, permanecemos quase cinco. Antes de pegar a minha bicicleta cansada de guerra, ouvi da mãe a ladainha: «Miguel… não comas manga verde com sal, chove a cântaros! Não me desobedeças! Olha que Deus castiga filho desobediente!».
A cabeça abanou sim, o coração disse não. E lá fui eu para a escola, a 15 minutos de casa. As aulas da manhã terminaram mais cedo, o professor de matemática faltou, estava doente. Morte de cavalo, alegria de urubu. Eu e alguns amigos da turma reunimo-nos e fomos a correr, com as nossas bicicletas, em direção à casa do Arthur, que não era o rei, mas morava numa vivenda enorme, com um quintal maior ainda. O pai dele era alfacinha, cônsul honorário do Estado Português. A mãe, brasileira, médica. A irmã mais velha era a única a estar em casa àquela hora. Cúmplice, juntou-se a nós e conduziu-nos até ao pé das árvores frutíferas. Havia tantas. O alvo da nossa cobiça era a mangueira. Corpos encharcados, a pingar água e lama sobre o chão cozinha, partilhámos, degustámos as mangas verdes que conseguimos apanhar diretamente do pé. Cada um fartou-se de comer nem sei quantas, com sal e pimenta. Conforme mandava o figurino. Não tardou e o castigo divino correu a galope, mais rápido do que eu, a chicotear a velha bicicleta. Sentia tremores, suores. Arrepios percorriam-me o corpo, do estômago ao citopígio. Para completar o cenário, a mãe abriu-me a porta com ares de..."eu já previa!". Coitadito de mim, desconhecia por completo a Terceira Lei de Newton, mas a reação foi instintiva, corri feito um assarapantado das ideias. Nunca havia pensado na distância do corredor à casa de banho. Uns segundos a mais e deixaria pistas nos calções. 
Resumo da ópera. Uma noite de Imperador. Da cama para o trono, do trono para a cama. Não sei do pior, as vozes vivas na barriga, ou a voz da mãe a lembrar-me dos castigos de Deus. Nos dias atuais, as crianças aprendem desde tenra idade a denominação científica das coisas, gastroenterite. Eu sabia do nome vulgar e já era muito. Depois disso, seguiram-se outras, sempre acompanhadas de prévias ladainhas maternas. Com o passar dos anos, veio a rendição, era inútil remar contra a maré. As mães devem de ter bola de cristal. A minha previa os meus mal feitos, antes mesmo de eu imaginar fazê-los. E claro, os castigos. A mãe, sabiamente, ensinou-me a lição para a vida ou, se calhar, foi a própria vida. Hoje, aos quarenta anos, tornei-me um adulto bem-comportado. Quer dizer, mais ou menos. Fato, quando ouço a ladainha a dizer-me «vai arrefecer! Levas o casaco? Ainda apanhas uma constipação daquelas!», não hesito. Saio de casa, sob um sol de 30 graus, a olhar para o céu, com um casaco dentro da mochila. Há muito deixei de acreditar em punições divinas, mas sabes como é, não é? Melhor obedecer à mãe, afinal...ele pode estar à espreita. Sim! Ele! O tal do castigo...
0 Comentários
Anterior
Seguinte

    Desafios de escrita criativa

    Este é o espaço onde publicamos os textos dos membros do Clube de Escritores.

    Quero participar

    Histórico

    Junho 2022
    Maio 2022
    Abril 2022
    Março 2022
    Fevereiro 2022
    Janeiro 2022
    Dezembro 2021
    Novembro 2021
    Outubro 2021
    Novembro 2020
    Outubro 2020
    Setembro 2020
    Agosto 2020
    Julho 2020
    Junho 2020
    Maio 2020
    Abril 2020

    Categorias

    Todos
    Desafios
    Textos Vencedores

    Feed RSS

labE | Laboratório de Escrita

Juntos escrevemos mais e melhor.