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4/16/2020

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Texto vencedor do desafio de escrita criativa

 

Ala psiquiátrica - texto de Mara Frade

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Aquele silêncio suspenso domina o ar, como sucede sempre que as luzes se apagam inusitadamente. Parei uns segundos até o meu cérebro processar a informação e os meus olhos se habituarem ao escuro. Lentamente, desloquei-me até ao interruptor na parede. Pressionei o botão. Nada mais, além do silêncio.

Não fosse a minha mente clara e capaz de se adaptar racionalmente às circunstâncias, certamente me julgaria perdida no meio de um livro do Stephen King. “Respira”, pensei, “conheces esta ala de psiquiatria como a palma das tuas mãos, respira…”. “Tenho duas hipóteses” alvitrei para mim mesma: “ou fico à espera de que alguma alma caridosa vá inspeccionar os fusíveis, ou eu mesma, alma caridosa, ponho pés ao caminho e vou ver o que se passa.”

Abri a porta do meu gabinete e coloquei a cabeça de fora. O edifico começou lentamente a acordar do sobressalto e o silêncio de há pouco ia dando lugar a murmúrios de vozes que se liquefaziam no ar. Contive a vontade imensa que tinha de gritar e indagar se havia por ali viva alma capaz de me informar se este apagão se devia a um corte de energia na rua, ou à inusitada explosão de um qualquer fusível do quadro eléctrico. Tentei baixinho: “Hei? Anda alguém por aí?”. Nada. Só um crescendo de murmúrios e pés arrastados nos mosaicos assépticos das salas. “Estamos mal!”, pensei desanimada. Ganhei forças, ou coragem, sei lá! e avancei para fora da ilusória segurança do meu cubículo.

Aqui fora as coisas assumiram contornos mais ao jeito do tal livro de S. King. A luz branca do luar penetra pelas enormes vidraças das janelas e as sombras das grades projectam-se no chão da mesma forma, acentuando ainda mais a ideia de que estou aprisionada no mundo das sombras e dos murmúrios.

Encosto a mão direita à parede das janelas e guio-me pela linha recta das suas sacadas. Vou andando, a medo, com o sentimento estúpido de que esta aventura tem tudo para correr mal. “Está aqui alguém?”, volto a perguntar.
Do lado esquerdo do longo corredor vieram diversas respostas sussurradas à minha pergunta, estranhamente a que mais me faz sentido parece-me o eco das minhas palavras “Está aí alguém? Alguém… alguém…”

Paro para me certificar de que estou na posse de todas as minhas faculdades e procuro em mim o senso de todos os outros sentidos que não o da visão, de modo a apurá-los ao máximo. “Mais uns metros e chegas às escadas”, digo a mim mesma em voz alta. E avanço, acelerando cada vez mais o meu passo, num receio pueril deste desconhecido que, até há pouco, me era tão familiar.

Sinto algo na minha mão esquerda, é o papel de há pouco, que o meu paciente me tinha passado sub-repticiamente no final da nossa consulta. Atiro-o para dentro do bolso da bata e continuo a avançar pelo corredor. Os meus sapatos a bater nos mosaicos apressadamente enquanto ainda me parece escutar o eco minha pergunta: “alguém… alguém…”
Estaquei mesmo antes de chegar ao patamar onde estariam as escadas. Os ruídos das vozes que ouvira há pouco, transformavam-se docemente em gemidos. Ouvi nitidamente o roçagar de tecidos entre os sussurros, pele com pele? Seria isso? Pele com pele?

Recuo uns passos até ao gabinete mais próximo. A porta está entreaberta e um raio de luz azul caí sobre a entrada, formando uma espécie de linha luminosa até ao interior da sala. Os sons tornam-se cada vez mais nítidos, húmidos, ritmados. “Será?”, penso “Não é possível, isto não está de certeza a acontecer?” Tento empurrar ligeiramente a porta de forma a não ser notada, mas, as dobradiças gastas, em conjunto com a minha falta de discrição habitual, fazem com que o metal e a madeira emitam um ligeiro gemido. Paro, imóvel, na esperança de não ser notada. Lá dentro, dois corpos, duas silhuetas humanas entrelaçam-se com as suas sombras vivas pela luz que lhes bate em cheio. Sem roupas, no chão. O espanto e a curiosidade fazem-me entrar. Não repararam em mim, só têm sentidos para si mesmos. Dois corpos, agora sombras e calor, envolvidos num abraço intenso, fundem-se no mais glorioso acto de amor que vira até então. Os meus pés, as minha pernas, não me permitem sair do meu lugar de espectadora, imóveis… ou serei eu que não quero sair?

O mesmo som começa a dominar toda a ala do hospital em que me encontro. Não sei se por sugestão se na realidade é o que sucede. Não sei…, mas tenho a clara sensação de que este acto de amor se está a entranhar em mim como uma urticária dos sentidos. E afasto-me daquela sala a recuar, a porta permanece aberta e a luz volta a bater em cheio nos dois seres humanos que se amam sem se darem conta de mim, ou de nada à sua volta.

Sou impelida a seguir o caminho para o meu gabinete, ao invés de continuar para a saída, sem saber bem porquê. Na porta ao lado, parece-me ouvir o mesmo conjunto de sons que pressentira anteriormente, e espreito. A mesma cena, o mesmo amor desenfreado acontece aqui, dois seres humanos à minha frente, penetram-se com a intensidade sôfrega de quem não se ama há milénios.  Saio para o corredor e tento encontrar a linha segura da sacada das janelas para me guiar de volta à segurança da minha sala. Tropeço em algo, desequilibro-me e quase caio sobre um corpo humano sem roupas que se funde em outro corpo aos meus pés no corredor. Tento avançar, mas o chão está coberto de humanos, contorcionistas e brilhantes, como animais aquáticos, que se misturam uns nos outros, gemendo, amando-se. À medida que rompo a custo pelo meio desta inusitada fusão, percepciono o que me parecem ser pacientes, médicos, enfermeiros, em pleno acto de amor abnegado e luxuriante, se é que isso seja possível.

Às vezes temos dificuldade em adaptarmo-nos à realidade, porque ela nos parece tão irreal que é inconcebível ao nosso cérebro atribuir-lhe carácter de verdade. Mas, por muito que me seja difícil, esta é de facto a minha realidade presente.

Quedo-me de olhos postos no céu da noite, costas voltadas para estes corpos, as mãos na cabeça a apertarem as minhas têmporas com força, como costumo fazer sempre que necessito de me concentrar. Sinto uns braços fortes apertarem a minha cintura. O meu primeiro instinto é o de me libertar imediatamente do abraço e levo as minhas mãos ao encontro das que me cingem o corpo. Mas, uma onda de calor tão intenso como o fogo da lareira no Inverno assoma-me dos pés à cabeça. As minhas mãos, ao invés de repelirem o abraço, entrelaçam-se nos dedos que me tocam. “Não posso! Não posso!”, penso, julgando eu que em silêncio. “Claro que pode Doutora, podemos todos, hoje podemos todos!” Esta voz, que me responde ao ouvido, é-me tão familiar… No entanto, parece-me que não deverei tentar encontrar o rosto por detrás das palavras. Homem, mulher, fauno ou bacante, pouco me importa agora. Há algo dentro de mim que queima. Parar é impossível, o único caminho neste momento é amar, deixar fluir o magma quente que corre dentro deste corpo até que o mesmo escorra com a intensidade de mil vulcões. E deixo-me ir, assim, como todos os outros, na mesma luxuria dos sentidos, sobre a luz da lua que entra em azul pelas janelas.

Um frio glaciar faz-me acordar, gelada, sobre os mosaicos verdes do corredor. Acordamos todos, dezenas de seres humanos sem roupas e sem consciência, despertam ledamente da noite anterior. “Lembro-me de tudo, caraças… eles também se devem lembrar”, é o primeiro laivo de assertividade que tenho nessa manhã. Evitando olhar-nos nos olhos, vamos aos tropeções em busca dos nossos rumos, entrando nos gabinetes, percorrendo o corredor apressadamente em direcção à saída.

Não encontrei a minha bata nem as minhas roupas, mas tenho sempre uma t-shirt e umas calças de ganga velhas, no cacifo que mora em frente da minha secretária. É o meu fim de turno, estou a fazer noites. E vou, compassadamente, pelo corredor fora até ao elevador. Evitamos todos olhar-nos nos olhos, mas há uma ligeira tentação que nos impulsiona a levantar as iris, curiosas, de cada vez que que nos cruzamos.

Quando chego a casa deixo-me cair em cima da cama sem me dar ao trabalho de mudar de roupa. Na minha mente estão presentes todas as imagens da noite anterior, como fotogramas dispersos, mas, porém, bastante evidentes. Tento colocar o cérebro a trabalhar em busca da explicação racional para tamanha loucura. Que feitiço foi este que nos libertou das amarras e semeou um desejo de amor desenfreado nos nossos corpos? Não consigo, estou demasiado cansada para isso. Vou fechar os olhos e deixar que Morfeu me leve consigo.

Da porta aberta do meu gabinete vejo a familiar luz da lua bater nas grades das janelas. Hoje não há sombras, como ontem, porque hoje o corredor está iluminado, toda esta ala está iluminada. Vou até à porta e encosto-me à sua ombreira a contemplar os mosaicos, as longas vidraças e o murmúrio dos doentes nas suas salas e dos colegas nos seus gabinetes. Hoje, depois da noite anterior, estamos todos reclusos do receio de nos enfrentar. “Que raio se passou ontem?”, este pergunta que persiste em mim.

            Um dos meus doentes passa no corredor. Cabelos loiros, os caracóis em desalinho, lança-me um sorriso matreiro. E eu retribuo. “Será que foi com ele?” Interrogo-me. Um frio passa-me pela coluna. “Caramba, um doente. Onde é que eu estava com a cabeça?”.

            “Preciso de um café.”, penso, enquanto equaciono os prós e os contras de efectuar todo o percurso até à cafetaria e os encontros e desencontros que irei ter. Lá vou, mais a vergonha do que a medo, cabisbaixa, mãos nos bolsos do vestido, em passo quase de corrida. 

            “Doutora!”, oiço uma voz a chamar. “Doutora!”

            Perante a insistência, não posso deixar de olhar e atirar um breve aceno com o queixo.

            “Doutora, ontem perdeu a sua bata.” E lá está ele, o mesmo paciente de há pouco, com o seu sorriso atrevido a aproximar-se de mim e a estender-me um pedaço de tecido branco amarrotado, que trás debaixo do braço. Aproxima-se do meu ouvido e sussurra para que o ouça “Isto não é uma história sobre luxúria, é uma história sobre o amor!”

Estendo a mão e agradeço o gesto. “De nada”, responde ele e afasta-se.
           
Dei umas sacudidelas vigorosas ao trapo que se assemelhava à minha bata. De um dos bolsos caiu um pequeno papel dobrado em quatro. No meio de confusão da noite de ontem, nem tomara atenção ao recado que o último paciente de me deixara escrito.

Comecei a desembrulhá-lo despreocupadamente, “Que raio de noite a de ontem!”. À medida que vou abrindo a pequena missiva, volto a sentir uma vibração familiar por baixo dos pés. Um tremor, como um murmúrio, em crescendo até ao peito. E depois, como se por decalque da noite anterior, as luzes apagam-se sem mais explicações!

E, com uma clarividência quase divina, lembro-me do nome do paciente que me dera o papel que agora, e ontem, eu seguro na mão: Eros, o nome dele é Eros o deus do Amor!!!

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