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por São Bernardes Hoje trouxeram-me um vestido.
Não sei porque razão querem que o vista, se tudo vai arder. Devem achar que o meu velho vestido não é apropriado, está sujo e roto. Mas é com ele que vou, pois é meu e se serviu para estar, durante todo este tempo, neste antro imundo e malcheiroso também servirá para me acompanhar até ao fim. O ser humano é vil e egoísta! Como é possível que não entendam a mais básica das ciências, a mais antiga de todas as religiões? A minha avó ensinou-me a respeitar a natureza e a conhecê-la como a palma da minha mão, a saber usar aquilo que ela nos dá para vivermos melhor. A calêndula, que apazigua as gripes e constipações, a doce-lima os males do estômago, a valeriana que nos ajuda a conciliar o sono em noites complicadas, a casca da bétula para irritações na pele e tantas outras que podem ajudar-nos. Mas para esses que nada compreendem do mundo que os rodeia, todo este conhecimento é bruxaria. Gentalha importante, mas pobre de espírito. Sei que os minutos passam, e dentro em pouco tudo terminará para mim. Lá fora, oiço o burburinho do povo que se aproxima para verem a bruxa arder na fogueira. Até esses que iam ter comigo à procura de mezinhas que lhes acalmassem as dores ou o sofrimento, hoje estão aqui para verem o espetáculo. Sinto as botas de couro a calcorrearem o andar de cima. Aproxima-se a hora e eu respiro fundo. Penso na minha vida e vejo o sorriso do meu filho, as gargalhadas dele quando brincávamos ao sol, dando cambalhotas no prado e correndo em direção ao riacho, onde mergulhávamos para ver os peixes a fugirem espavoridos. Lembro-me das histórias que lhe contava, “era uma vez um rapaz que vivia numa floresta longínqua…”, “o que é longínqua, mamã?”, perguntava com a sua voz doce. Agora oiço as chaves a baterem entre si, fazendo eco nas masmorras. Os guardas falam baixo, mas as suas vozes são possantes e ouvem-se bem. Lembro-me de quando o ensinei a ler e ele descobriu um mundo gigante à sua volta. Era um dos melhores alunos na escola, sempre a querer saber mais e mais. Cresceu muito depressa, e em pouco tempo deixei de ter aqueles bracinhos fofos que me envolviam e os beijos molhados pelas lágrimas, causadas pelo joelho esfolado ou pelo pico no dedo. Ah …. Agora sinto falta da barba que desponta e que me pica quando, num rápido momento de ternura, ainda me envolve com os seus braços fortes e me deposita um beijo no rosto. Abrem-me a porta e levanto-me. Não digo nada, sigo em frente, no meio deles. Solto o meu cabelo que cai pelas costas, como um xaile vermelho que me aconchega de volta ao lar. Lá fora, o sol apanha-me desprevenida, fecho os olhos por um momento e desoriento-me. Sinto a mão do guarda a agarrar-me no braço com força e dou um puxão, soltando-me, e caminho em direção à pira que espera por mim. Atam-me com força, devem ter medo que faça um feitiço e que saia dali a voar montada numa vassoura. Uma multidão ruidosa assiste. Olho em frente e vejo os rostos sedentos, querem sangue, querem espetáculos macabros que os façam esquecer a miséria da humanidade. Vejo-o! No meio da multidão, sério com o seu rosto lindo. Tem uma mochila às costas, percebo que vai partir. As lágrimas correm silenciosas pelas faces que tantas vezes beijei. Sorrio-lhe e sinto um calor imenso. Fecho os olhos, guardo essa recordação dentro de mim e sinto-me livre para partir com ele, correndo o mundo à procura de novas aventuras. O seu comentário será publicado depois de ser aprovado.
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Novembro 2022
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3/10/2022
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