Marta Janicas Não sei quantas vezes mais terei de lhes dizer! Isto não é meu, resmungou o velho naquele tom de voz que todos ouvem, mas que apenas faz parte do seu pensamento. O álbum fotográfico que se encontrava na mesa de centro voltou a sair disparado pelo ar, aterrando depois de bater na porta do quarto.
Guilherme estava inquieto, aborrecido. Todos os dias o mesmo. Era certo que tinha 94 anos, mas ainda sabia o que lhe pertencia. Talvez aquele objeto fosse de outro residente do lar. Quem sabe, não estaria o dono aflitíssimo, sem saber onde se encontrava a sua relíquia, o seu pedaço de história. Mas em vez de procurarem o proprietário, alguém perdia o seu tempo a trazer de volta aquele álbum para o quarto, o seu quarto. Todas as manhãs aquele álbum estava ali, já parecia brincadeira e, o pior, é que não importava as vezes que o recusava, ele voltava sempre ali. Mas Guilherme sabia o que tinha de fazer. Teria de esperar, é claro, as suas pernas não funcionavam como outrora e agachar-se estava fora de questão, teria de esperar pela hora em que uma auxiliar viria ao seu quarto e poderia apanhar aquele pedaço de história do chão. Às 8 horas, em ponto, a menina Alzira, uma rapariga para os seus 40 e poucos anos, de ancas largas e feição doce, abriu a porta dos aposentos do velho e, sem ser de estranhar, agachou-se logo, o álbum estaria ali à sua espera. — Bom dia, senhor Guilherme, como passou a noite? — perguntou-lhe ela com afeto. — A noite passo-a eu bem, o problema é quando acordo e percebo que nenhum de vós me leva a sério. — responde-lhe o velho, frustrado. Alzira sorriu-lhe amistosamente: — Não se preocupe com isso agora, vamos tratar de si e quando for ao pequeno-almoço já pode procurar pelo dono desse pedaço de história. Talvez tivesse razão, parecia ser hoje o dia. Felizmente, a menina Alzira parecia conhecer a sua necessidade, era uma pena não ser ela a sua cuidadora todos os dias. Mal podia esperar por entregar aquele pertence tão precioso a quem dizia respeito. Agradava-lhe a maneira de pensar da menina Alzira, também ela olhava para aquele simples álbum fotográfico como um pedaço de história, era por isso que gostava tanto dela. — Alzira! — chamou o velho, do sofá situado a um canto da sala de convívio, longe da televisão e de onde podia ver toda a sala, incluindo todos os que se encontravam nela. — Diga, senhor Guilherme, precisa de ajuda? — questionou Alzira. — Sente-se comigo e ajude-me a identificar este residente. — disse o velho, apontando para uma das fotografias. — Eu gostava muito, mas vai começar a hora das visitas, tenho de voltar ao trabalho. — Nada disso, menina, esta missão não pode passar de hoje! Veja com mais atenção. — Na fotografia podiam ver-se dois homens adultos e sorridentes, virados para a câmara. — Veja bem, devem ser pai e filho, talvez ele o venha visitar hoje, não lhe parece? — Parece-me que sim, talvez tenhamos essa sorte. — Alzira ergueu-se e retirou-se para poder fazer o seu trabalho e, enquanto isso, o velho acenou afirmativamente com a cabeça e voltou a erguê-la, precisava de escrutinar toda aquela gente, com o seu olhar míope, para encontrá-lo. Concentrado como estava, não viu o homem que se aproximou dele até que o mesmo lhe tapou a visão. — Queira desviar-se, estou à procura de uma pessoa! — Resmungou o velho. — Creio que possa terminar a sua busca, senhor Guilherme, estava à minha procura? O velho focou o seu olhar no rosto do homem e a sua expressão suavizou-se. — Ainda bem que chegou! Tenho algo que pertence ao seu pai. — Já fui informado senhor, o meu nome é Eduardo. Posso sentar-me ao seu lado e contar-lhe um pedaço de história? — Claro que sim, sempre me intrigou quais seriam as memórias por detrás destas fotografias. O homem sentou-se na cadeira onde anteriormente se sentara a menina Alzira, recebeu o álbum fechado, inscrito a letras maiúsculas como “Pedaços de História”, da mão do velho e abriu-o na primeira página, virando-o, para que Guilherme pudesse ver as fotografias expostas. — Há muitos anos, esta fotografia foi tirada no Gerês, quando eu e o meu pai começámos a tradição de guardar as nossas memórias para mais tarde recordar. Chamámos-lhe Pedaços de História. — As vivências daquele dia na natureza envolveram os dois homens e quando Eduardo olhou novamente para o velho, viu nele um vislumbre daquilo que ele um dia fora. As lágrimas de Guilherme escorriam-lhe pela face e Eduardo soube que, naquele momento, o seu pai estava presente. Quando o horário de visitas terminou, Eduardo levou Guilherme de volta ao seu quarto e pousou cuidadosamente o Pedaço de História na mesa de centro.
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A Estefânia Barroso não faltou à chamada e respondeu ao desafio mensal lançado na nossa newsletter com um texto inspirado na obra "O Beijo", de Gustav Klimt. Leia abaixo. Parabéns, Estefânia! Gustavo sabia que tinha chegado a hora da partida. Por difícil que lhe fosse, sabia que não podia adiar. Hoje iriam partir, ele e mais uns quantos bravos homens, para se unir ao esforço de outros na frente de combate. Tal situação era pouco expectável um ano antes. Pensava-se que esta guerra seria resolvida em poucos dias, mas a verdade é que do outro lado tinha-se apresentado uma nação orgulhosa, firme e difícil de vencer. Aquilo que se pensava que se resolveria em poucos dias, arrastava-se, neste momento, há vários meses e as baixas eram mais que muitas. Como tal, e porque a guerra parecia querer prolongar-se muito para além do que era expectável, todos os reforços eram necessários.
O pelotão que hoje se punha a caminho era formado, maioritariamente, por jovens adultos, mal saídos da puberdade. Era um bando de jovens a quem faltava o ímpeto guerreiro que tinham visto nos seus pais. Estes jovens percebiam que a guerra se estava a arrastar indefinidamente e que, ainda que a ganhassem, nada justificaria as baixas que se sentiam. Todas as famílias estavam, neste momento, de luto, por um irmão, um pai, um tio e até, mesmo, um avô. Gustavo tinha sido poupado, até ao momento, a esse esforço de guerra. O seu pai tinha sido dos primeiros a cair em combate e, como ele era o único sustento da família – constituída pela viúva, sua mãe, e por mais duas irmãs, tinham decidido que Gustavo se iria manter na aldeia, não partindo para a frente da guerra. Contudo, as baixas eram imensas, as necessidades de homens que combatessem infindas. Já pouco importava se era Gustavo quem sustentava a casa. A necessidade de o ter, junto dos outros jovens, era incontornável. E assim aconteceu: um dia, Gustavo recebeu uma missiva que o convocava para se juntar à frente de combate… Tinha-se passado uma semana desde essa convocatória. Desde esse dia, as lágrimas eram muitas. A mãe, que ainda se demonstrava inconsolável por ter perdido o marido, sentia que estava prestes a perder o filho varão. As irmãs choravam pelo irmão mais velho, por sentirem que ficariam, doravante, completamente desprotegidas e, há que dizê-lo, pelos jovens amigos que também iriam partir, acompanhando o irmão. Gustavo guardou uma última visita para o dia da partida. Queria guardar a imagem da sua amada na mente e no coração. Ainda que quisesse muito ver e abraçar Madalena, a dor da separação já o dilacerava. Não conseguia apagar da mente a imagem da sua amada, com as lágrimas a caírem-lhe quatro a quatro, quando a tinha informado sobre a convocatória… Despedir-se dela iria ser o mais difícil. Mas tinha de o fazer. Gustavo caminhava lentamente em direção à casa da sua amada Madalena. Este momento era-lhe deveras difícil. Na mão levava um manto que a mãe tinha bordado e costurado pelas suas próprias mãos. Ela realizara aquela pequena obra de arte para oferecer à primeira filha que se casasse, mas considerou que oferecê-lo a Madalena seria, naquele momento, a decisão acertada. Gustavo chegou então a casa de Madalena. Bateu à porta. Ela veio recebê-lo com um semblante triste. Os seus cabelos cor de fogo, habitualmente tão brilhantes, estavam baços, tal como estava a sua cara. Ainda assim, Gustavo reparou que ela envergava, para a despedida, o seu melhor vestido e que tinha adornado o seu cabelo com florzinhas do campo. Gustavo sorriu. Ela era tão bela! Mostrou-lhe o manto, referindo que era a sua prenda de despedida. Não trocaram muitas mais palavras. Gustavo enlaçou-a, cobrindo-a com o manto que lhe tinha oferecido. Sentia o calor do seu corpo atravessar as camadas de tecido. Ah, como ia sentir falta desse aconchego – pensou ele. Depositou-lhe um beijo terno na cara. Pensou que era essa imagem que ele queria guardar para todo o sempre na sua mente. A beleza dela e aquele momento que, apesar de carregado de tristeza, estava carregado do amor que os unia, do aconchego que ela lhe transmitia. Queria gravar essa imagem do beijo, do abraço, da sua amada para a eternidade. Meses mais tarde, quando Gustavo tombou em combate, foi essa a última imagem que lhe atravessou a mente. Quem olhasse para aquele corpo ali largado, para aquele rosto sem vida, poderia ver, estranhamente, um leve sorriso na ponta dos lábios. Gustavo tombou em combate. Perdeu a vida. Mas temos a certeza de que a última imagem que lhe atravessou a mente não foi o horror daquela batalha, o sangue e a lama, mas sim a imagem dele próprio a abraçar e a dar um beijo à sua linda Madalena, de olhos fechados, com flores no cabelo, embrulhada num manto e num abraço. para fazer em 10 minutosNo Dia Mundial da Língua Portuguesa, propomos-te 20 desafios de escrita criativa que poderás fazer em casa, em menos de 10 minutos. Presta homenagem à tua língua nativa saboreando as palavras e colocando-as num papel como só tu sabes fazer. Sê criativo e diverte-te!
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Abril 2025
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