No passado dia 28 de janeiro estreei-me na ARIPSI - Associação de Reformados e Idosos da Póvoa de Santa Iria - onde facilitei uma oficina poética. Se existem momentos em que as palavras não traduzem o quão fico mais rica, mais sábia e mais cheia de amor, este foi um deles. A afabilidade com que fui recebida pelo Tiago e pela Sara, animadores socioculturais da instituição, e pelos utentes que responderam à chamada, foi indescritível. O convívio, a alegria, os desabafos feitos em surdina, os olhares tão ternos, valeram por uma vida inteira. Deixei a ARIPSI com um enorme sentimento de gratidão e a promessa, que cumprirei, de um regresso em breve. No dia 1 de fevereiro foi tempo de voltar ao café literário Ler Por Aí, para facilitar um workshop de escrita criativa e marketing digital para autores. Nesta sessão, tivemos o prazer de receber participantes não só de Lisboa, mas também do Porto e do Algarve. Dedicámos quatro horas à teoria e à prática, e criámos espaço para saborear um chá e uma deliciosa tarte de maçã enquanto debatemos a realidade do mercado editorial. O ambiente intimista, e o número limitado de participantes, facilitaram a interação e uma interessante troca de ideias. Mas os regressos não ficaram por aqui. No dia 4 de fevereiro voltei ao agrupamento de escolas de São João da Talha para dois workshops de escrita criativa. O objetivo foi sensibilizar os mais novos para a importância da criatividade, e da escrita criativa enquanto ferramenta para exercitar o músculo criativo. A atmosfera foi de descontração e boa disposição, com claquetes a bater e bolas a voar, sem tirar o foco da escrita. Como tudo o que é bom termina depressa, o toque da campainha intrometeu-se para nos lembrar que estava na hora de regressar às matérias curriculares. Semana cheia, coração cheio. Se queres saber por onde andaremos nas próximas semanas, acompanha as novidades no nosso site e redes sociais.
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Há coisas que nos enchem de orgulho. Este conto, proposto pelo Laboratório de Escrita e criado pela Júlia Domingues, participante de um dos nossos workshops de escrita criativa, é uma delas. Não deixem de ler, prometemos que não se vão arrepender! "A tarde tinha-se posto cinzenta. As grossas nuvens vaticinavam o resto do dia e a aragem fria desassossegava as escassas folhas que ainda permaneciam em cima das árvores. As ruas da parte baixa da cidade adensavam-se de pessoas, que calcavam os paralelos da calçada portuguesa de forma aleatória. Lá ao fundo, numa ruela esquecida pela vida, passava Mário, o amolador que trazia a chuva. A melodia atrapalhada que saía da sua gaita de pã atraía os mais pequenos para os beirais das janelas.
— Lá está este a chamar a chuva! – Diziam os velhos, com o cigarro na ponta dos dedos e com o olhar pregado ao céu. Mário, homem para os seus quarenta e muitos anos, acordava, todos os dias, antes do sol despertar. Cambaleava até à casa de banho e, de fronte para o pequeno espelho, desfazia a barba com a ajuda do velho pincel de pelo de marta. No cabelo, actualmente grisalho, espalhava uma brilhantina barata e amaciava o farto bigode com o que restava do produto. O pai de Mário – um homem rude e de pouca formação – havia pegado nele, depois de Mário ter chumbado no quarto ano de escolaridade, e confinara-o à pequena oficina, onde as facas e as tesouras passaram a ser os brinquedos da sua mocidade. O que o pai lhe deixou do ofício faltou-lhe em amor. — A vida é mesmo assim, ou matas ou morres! – Disse-lhe o patriarca, numa manhã fria de inverno, antes de enfiar umas roupas na mala de viagem e abalar de casa para nunca mais voltar. Aos quinze anos, Mário viu-se entre o fio da navalha e uma mãe moribunda deitada numa cama sem asseio. No dia a seguir ao pai ter abandonado o lar, Mário acordou mais cedo do que o costume. Saiu de mansinho, para não acordar a mãe, e desceu a rua até à oficina, que o recebeu com uma parafernália de velhos objectos. Entre eles, destacava-se a gaita de pã, deixada pelo pai, no dia anterior, em cima da bancada. Nessa manhã, com o choro preso entre a garganta e o esófago, Mário tocou, pela primeira vez e sozinho, uma melodia que o acompanharia no desespero dos dias. Era assim há mais de trinta anos. Não sabia fazer as coisas de outra forma. Todas as manhãs, depois de comer um papo-seco e de beber uma caneca de café com leite, deixava o pequeno-almoço na mesinha de cabeceira do quarto da mãe e saía de casa com os bolsos vazios de dinheiro e com coração cheio de esperança. Esperançava-se que a vida melhorasse ou que o pai, um dia, voltasse. Mas nem a vida melhorou e nem o pai voltou. A esperança finou-se de vez no dia em que Mário encontrou a mãe sufocada no próprio vómito. Desde esse dia que não voltou a tocar a gaita de pã. No dia do funeral da mãe, atirou-a para um canto da oficina e deixou-a caída entre as varetas partidas e as lâminas cegas das facas sem uso. Além de chamar a chuva, como sempre ouviu os outros dizerem, acreditava que era a gaita de pã que lhe enxotava a pouca sorte que tinha. Mário sobreviveu como pôde. Casou novo, com um sim arrancado a ferros, depois de ter namorado Noémia durante três anos. Noémia, mulher de anca larga e mãos de pele grossa, gritava os melhores pregões de Lisboa e arredores. Tinha uma banca na praça há mais de dez anos e o sonho de conhecer o mundo. Um dia, Noémia não regressou da praça. Mário, sentado na cozinha em frente a um prato vazio – que nunca chegou a ser servido – esperou-a o resto do dia. Nessa noite, deitou-se sem comer. No bairro corria à boca pequena que Noémia tinha fugido com um marinheiro, que tinha vindo a terra procurar mulher, e que prometeu levá-la a conhecer o mundo. Diz-se que, nesse dia, Noémia nem esperou para limpar a banca da praça. Atirou o avental para o chão, pejado de escamas, e abalou sem olhar para trás. Do casamento, Mário guarda o álbum de fotografias a preto e branco e a aliança na primeira gaveta da mesinha de cabeceira. Mário não voltou a casar. Resignou-se ao igual dos dias e aceitou, sem reservas, que a vida nada mais lhe reservava senão uns parcos, mas fiéis clientes, que lhe dava para pôr o pão na mesa. De manhã, percorria as ruas da parte velha da cidade e de tarde recolhia à penumbra da oficina, onde se entretinha a reparar aquilo que os outros tinham dado como sem concerto. Naquela manhã, o sol teimou em não aparecer. A aragem era fria e a chuva ameaçava cair a qualquer instante. Antes de sair para a rua, para mais um dia igual ao anterior, que tinha sido igual aos anteriores, Mário passou pela oficina para reparar a mó. Há uns dias que a sentia mais perra do que o habitual. Procurou umas ferramentas velhas no meio de outras ferramentas velhas e viu a gaita de pã caída num canto da oficina. Agachou-se e pegou nela. Já não se lembrava de como ela soava, nem tão pouco se lembrava porque a tinha atirado ao chão, há mais de vinte anos. Sacudiu-lhe o pó soprando para as palhetas e, aos poucos, o som começou a formar-se entre um sopro e outro. Meteu a gaita ao bolso e saiu. A manhã tinha sido fraca. Antes de fazer uma pausa para almoçar na tasca do Arménio, como acontecia todos os dias desde que a mulher saiu de casa, Mário jogou as mãos aos bolsos para contar as moedas. À porta da tasca, balbuciou: — Arménio, isto hoje não chega para o prato do dia e para meio jarrinho de vinho, posso pagar o resto amanhã? — Porra Mário, é sempre a mesma coisa. Isto está mau para todos, ouviste? Qualquer dia acaba o fiado. – Disse-lhe o dono da tasca enquanto enchia meio jarro de vinho directamente da pipa e o punha à frente de Mário que, entretanto, se sentou ao balcão de costas para a porta. Ao longe, o televisor da tasca debitava um som abafado que, entre o burburinho dos clientes e o tilintar dos pratos e talheres, não permitia descodificar o que o jornalista dizia. Foi um dos clientes que deu o alerta: — Arménio, põe o raio da televisão mais alto. Não se ouve o que o jornalista está a dizer e parece que está a acontecer alguma coisa. Todos tomaram atenção ao televisor. Todos menos Mário. Já nada lhe interessava, já nada lhe roubava a atenção. A vida havia-lhe tirado tudo e ele era apenas o que restava do somatório dos dias iguais. Assim, Mário ignorou que o jornalista estivesse a informar os telespetadores, em notícia de última hora, que se encontrava a monte um assassino fugido do estabelecimento prisional de Lisboa, há pouco mais de duas horas, e que tinha sido avistado, nos últimos minutos, na parte baixa da cidade de Lisboa. A agitação dentro da tasca do Arménio foi imediata. Uns juntavam os talheres com o olhar colado à televisão, outros emborcavam à pressa o que restava dentro dos copos mal lavados. Os comentários não tardaram: — O assassino anda à solta! — Ainda não o conseguiram apanhar. — Foi visto aqui perto. O resto conta-se por si. O cheiro a medo e a valentia esmorecida no rosto de cada cliente espelhava o pânico que estava prestes a instalar-se nas paredes da tasca. De costas para a porta e para a vida, Mário contava as moedas, espalhadas no balcão, e preparava-se para sair. No minuto seguinte, alguém entrou de rompante no acanhado estabelecimento e agarrou Mário pelo pescoço. Um braço robusto e imundo abraçava-lhe o pescoço, suprimindo o pouco ar que lhe restava nos pulmões. — É ele! Assassino! Assassino! Num acto involuntário, Mário, com a pouca força que lhe sobrava, enfiou a mão no bolso das calças coçadas e alcançou a navalha ponta e mola – o único presente que o pai lhe oferecera. Num impulso rápido e fugaz, Mário jogou o braço direito por cima do ombro esquerdo e, com a calma de quem já não tem pressa de viver, enterrou a ponta e mola no pescoço do homem. Aos poucos, sentiu o ar a voltar aos pulmões e a respiração a desengasgar-se. Antes de se virar para ver quem o tinha atacado, proferiu: — A vida é mesmo assim, ou matas ou morres! * Quando a polícia chegou à tasca do Arménio, a poça de sangue, oriunda do pescoço do homem, ocupava mais de metade do chão de mármore. Um corpo, inerte e disforme, jazia junto aos bancos altos de inox que preenchiam o comprido balcão da tasca. Mário, com uma inexpressividade no rosto fora do comum, fincava o corpo contra uma parede fria e suja. Não se lhe ouviu uma única palavra. Não riu, não chorou, não se entregou à culpa nem apelou por inocência. Olhava fixamente para o homem que tinha acabado de matar para evitar, quem sabe, de ser morto. Quando a polícia o algemou, Mário não ofereceu qualquer resistência. No televisor, a emissão tinha sido interrompida para dar conta aos telespectadores que o assassino, fugido do estabelecimento prisional de Lisboa, tinha sido morto com um golpe de uma navalha ponta e mola na veia jugular e que teve morte imediata. Antes de sair da tasca do Arménio, o agente de autoridade perguntou a Mário: — Conhece a vítima? — Conheço. – Respondeu prontamente. – É o meu pai! Para trás, junto ao corpo, estava a gaita de pã, a mesma que continuava a enxotar a pouca sorte que Mário tinha na vida." 🎄 Sabemos que experiências são mais valiosas do que bens materiais, sabemos que os nossos workshops de escrita criativa são, muitas vezes, o primeiro passo num caminho apaixonante.
Criámos estes vales presente a pensar naqueles que querem oferecer algo especial a alguém especial. Os vales são enviados via e-mail - poderão imprimi-los - e são válidos durante todo o ano de 2020. |
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