António Lebre de Freitas É tão absurdo dizer que um homem não pode amar a mesma mulher toda a vida, quanto dizer que um violinista precisa de diversos violinos para tocar a mesma música. (Honoré de Balzac)
Entrei no bar sem qualquer presunção. Apenas me apetecia uma bebida. Qualquer ela fosse. A tarde fora um desastre e só tinha um fito: beber! Beber algo que me tolhesse a mente e parasse os insultos que me dava a todo o instante. Acenaram-me do fundo da sala e caminhei para lá. Antes, pedira um whisky qualquer ao barman. A bebida e o som de fundo do Aznavour era tudo o que desejava. Sentei-me e vi-te. Um músculo da perna deu de si. Um calafrio percorreu-me a espinha. Sentei-me à tua frente. Entre ver-te e perceber que teria encontrado a mulher da minha vida foi um instante. Só se os astros se alinhassem contra. E caíssem sobre mim. Aquela a jura que de imediato fiz a mim próprio. Até Aznavour na canção que desfiava dizia: Et si l'humble garni / Qui nous servait de nid / Ne payait pas de mine C'est là qu'on s'est connu... Mas, não sei porquê, recordei Amália, e como eles se embrenharam num caso amoroso. Terá sido o que espoletou as duas seguintes horas? Em que desfiámos sonhos, despimos algemas, espreitámos emoções. Momentos houve em que nos sentimos escolhidos, tal era a sintonia, para viver aqueles instantes. Que não acabaram. Porque não deixámos que se fossem? A voz rouca do cantor que continuava no ar, mantinha o incentivo. Mas Amália, na mente, dizia-me que os escombros de uma partilha fugaz jazem facilmente sobre uma qualquer toalha branca. Um prenúncio? Olhos brilhantes suspensos no sorriso, gestos, expressões, memórias doces. Tudo sob a neblina da ternura. Os Deuses, decerto, bafejaram o tanto amor que ali se despejava. Pelo menos foi isso que entendi. Apesar de não ser grande adepto destas sintonias. Acordei e vi-te a meu lado. Afinal não sonhara. Eras de carne e osso e… sorrias-me. Tentei ser eu. Mas qual - pensei - o de ontem, ou aquele que sou realmente? Os meus olhos piscaram, os teus falaram: Quem és tu, além de um amante… assim-assim? Antes de responder, ouvi um som vindo da sala. Tinhas-te levantado e puseras Brel. Lembrei-me de outras conquistas. Nenhuma me dera um acordar tão doce: Ne me quitte pas / Il faut oublier / Tout peut s'oublier / Qui s'enfuit déja / Oublier le temps / Des malentendus… Ah! Brel! E os seus temas poéticos e penetrantes!... Fui para o outro encontro de cabeça lavada. No mesmo bar, à mesma hora, e já com um whisky servido… para os dois. Fiquei surpreendido com a leveza do teu corpo e a melodia que ele falava. Esta, a palavra exata. Fiquei inquieto, depois percebi: também ansiavas por ver o meu corpo dançando. Bebi um trago maior, puxei-te para o pequeno corredor entre mesas. E enlacei-te. Um vislumbre de ontem trespassou-me. E gostei. Como adoraram os clientes nas outras mesas. Enquanto Piaf nos dizia, também: Non me quitte pas.
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M Teresa Dangerfield Nunca percebera por que razão tinha horror a portas fechadas. Sentia-se claustrofóbica, como se não apenas as portas, mas todos os espaços em seu redor se fechassem, enclausurando-a para sempre.
Naquele dia estava de visita a um mosteiro. Adorava o silêncio aveludado que aqueles claustros proporcionavam. Dada a hora, ainda não se viam turistas deixando os seus ecos menos respeitosos àquele lugar. Por isso, apenas absorvia o ar cristalino da manhã, o perfume aconchegante das flores bem tratadas que rodeavam o centro do claustro e o canto conciliador de alguns pássaros que, decerto, também tinham adotado aquela tranquilidade. Por momentos, Rosa fechou os olhos e deixou que os primeiros raios de sol matinal lhe banhassem o rosto e o coração. Sentou-se no chão de pedra junto a um canteiro. Não percebeu como, mas sentiu-se transportada para um lugar que não conhecia. Via árvores e flores por todo o lado. O seu corpo era leve e parecia agora transparente, radiando luz. Os cabelos longos e louros flutuavam, mesmo sem se perceber qualquer brisa. Não conseguia descrever a paz e a sensação de amor que sentia. Apenas caminhou, em direção a uma luz mais distante. Percorria, entre árvores frondosas, um caminho de cristais e flores tão extraordinários que não encontrava palavras para descrevê-los. Mas algo a intrigava: cada passo que dava parecia tornar mais distante a luz que via ao fundo do caminho. Virou-se para trás. Viu uma porta. Seria uma armadilha? Estaria prisioneira? Não conseguia pensar. O coração batia descompassadamente e dizia-lhe que não poderia retroceder. O melhor seria caminhar em frente, custasse o que custasse. E, assim, caminhou, caminhou e caminhou. Mas esse caminho parecia não ter fim. Deu voltas e mais voltas, todavia o caminho era sempre o mesmo, como se estivesse numa sala cheia de espelhos. Não podia ficar ali, disso tinha a certeza. Foi então que pensou que a única solução, contrariamente ao que sentia, seria enfrentar o seu medo. Lá estava a porta, igual a todas as que temia. Respirou fundo e aproximou-se dela. A mão direita, trémula e suada, rodou a maçaneta. Do outro lado, um espaço maravilhoso, cheio de flores e cristais, que parecia expandir-se a cada passo seu. Havia outra porta mais distante. Dela irradiou a luz mais brilhante que jamais vira, envolvendo num abraço o seu corpo, também ele luminoso. Estava num espaço com duas portas fechadas, mas, pela primeira vez, sentia-se protegida, segura. Que mais poderia encontrar do outro lado da porta que ainda não abrira? Resoluta, encaminhou-se em direção à segunda porta. Mal alcançou a maçaneta, sentiu alguém tocar-lhe no ombro. Abriu os olhos. Afinal, estava no claustro onde tudo começara naquela manhã. Alguém lhe pedia para se levantar do chão, já que vários grupos de turistas começavam a chegar. Ainda sem perceber bem o que se passara, Rosa sentiu-se segura de algo: nem todas as portas nos enclausuram. A Estefânia Barroso não faltou à chamada e respondeu ao desafio mensal lançado na nossa newsletter com um texto inspirado na obra "O Beijo", de Gustav Klimt. Leia abaixo. Parabéns, Estefânia! Gustavo sabia que tinha chegado a hora da partida. Por difícil que lhe fosse, sabia que não podia adiar. Hoje iriam partir, ele e mais uns quantos bravos homens, para se unir ao esforço de outros na frente de combate. Tal situação era pouco expectável um ano antes. Pensava-se que esta guerra seria resolvida em poucos dias, mas a verdade é que do outro lado tinha-se apresentado uma nação orgulhosa, firme e difícil de vencer. Aquilo que se pensava que se resolveria em poucos dias, arrastava-se, neste momento, há vários meses e as baixas eram mais que muitas. Como tal, e porque a guerra parecia querer prolongar-se muito para além do que era expectável, todos os reforços eram necessários.
O pelotão que hoje se punha a caminho era formado, maioritariamente, por jovens adultos, mal saídos da puberdade. Era um bando de jovens a quem faltava o ímpeto guerreiro que tinham visto nos seus pais. Estes jovens percebiam que a guerra se estava a arrastar indefinidamente e que, ainda que a ganhassem, nada justificaria as baixas que se sentiam. Todas as famílias estavam, neste momento, de luto, por um irmão, um pai, um tio e até, mesmo, um avô. Gustavo tinha sido poupado, até ao momento, a esse esforço de guerra. O seu pai tinha sido dos primeiros a cair em combate e, como ele era o único sustento da família – constituída pela viúva, sua mãe, e por mais duas irmãs, tinham decidido que Gustavo se iria manter na aldeia, não partindo para a frente da guerra. Contudo, as baixas eram imensas, as necessidades de homens que combatessem infindas. Já pouco importava se era Gustavo quem sustentava a casa. A necessidade de o ter, junto dos outros jovens, era incontornável. E assim aconteceu: um dia, Gustavo recebeu uma missiva que o convocava para se juntar à frente de combate… Tinha-se passado uma semana desde essa convocatória. Desde esse dia, as lágrimas eram muitas. A mãe, que ainda se demonstrava inconsolável por ter perdido o marido, sentia que estava prestes a perder o filho varão. As irmãs choravam pelo irmão mais velho, por sentirem que ficariam, doravante, completamente desprotegidas e, há que dizê-lo, pelos jovens amigos que também iriam partir, acompanhando o irmão. Gustavo guardou uma última visita para o dia da partida. Queria guardar a imagem da sua amada na mente e no coração. Ainda que quisesse muito ver e abraçar Madalena, a dor da separação já o dilacerava. Não conseguia apagar da mente a imagem da sua amada, com as lágrimas a caírem-lhe quatro a quatro, quando a tinha informado sobre a convocatória… Despedir-se dela iria ser o mais difícil. Mas tinha de o fazer. Gustavo caminhava lentamente em direção à casa da sua amada Madalena. Este momento era-lhe deveras difícil. Na mão levava um manto que a mãe tinha bordado e costurado pelas suas próprias mãos. Ela realizara aquela pequena obra de arte para oferecer à primeira filha que se casasse, mas considerou que oferecê-lo a Madalena seria, naquele momento, a decisão acertada. Gustavo chegou então a casa de Madalena. Bateu à porta. Ela veio recebê-lo com um semblante triste. Os seus cabelos cor de fogo, habitualmente tão brilhantes, estavam baços, tal como estava a sua cara. Ainda assim, Gustavo reparou que ela envergava, para a despedida, o seu melhor vestido e que tinha adornado o seu cabelo com florzinhas do campo. Gustavo sorriu. Ela era tão bela! Mostrou-lhe o manto, referindo que era a sua prenda de despedida. Não trocaram muitas mais palavras. Gustavo enlaçou-a, cobrindo-a com o manto que lhe tinha oferecido. Sentia o calor do seu corpo atravessar as camadas de tecido. Ah, como ia sentir falta desse aconchego – pensou ele. Depositou-lhe um beijo terno na cara. Pensou que era essa imagem que ele queria guardar para todo o sempre na sua mente. A beleza dela e aquele momento que, apesar de carregado de tristeza, estava carregado do amor que os unia, do aconchego que ela lhe transmitia. Queria gravar essa imagem do beijo, do abraço, da sua amada para a eternidade. Meses mais tarde, quando Gustavo tombou em combate, foi essa a última imagem que lhe atravessou a mente. Quem olhasse para aquele corpo ali largado, para aquele rosto sem vida, poderia ver, estranhamente, um leve sorriso na ponta dos lábios. Gustavo tombou em combate. Perdeu a vida. Mas temos a certeza de que a última imagem que lhe atravessou a mente não foi o horror daquela batalha, o sangue e a lama, mas sim a imagem dele próprio a abraçar e a dar um beijo à sua linda Madalena, de olhos fechados, com flores no cabelo, embrulhada num manto e num abraço. |
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Dezembro 2024
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