A Estefânia Barroso não faltou à chamada e respondeu ao desafio mensal lançado na nossa newsletter com um texto inspirado na obra "O Beijo", de Gustav Klimt. Leia abaixo. Parabéns, Estefânia! Gustavo sabia que tinha chegado a hora da partida. Por difícil que lhe fosse, sabia que não podia adiar. Hoje iriam partir, ele e mais uns quantos bravos homens, para se unir ao esforço de outros na frente de combate. Tal situação era pouco expectável um ano antes. Pensava-se que esta guerra seria resolvida em poucos dias, mas a verdade é que do outro lado tinha-se apresentado uma nação orgulhosa, firme e difícil de vencer. Aquilo que se pensava que se resolveria em poucos dias, arrastava-se, neste momento, há vários meses e as baixas eram mais que muitas. Como tal, e porque a guerra parecia querer prolongar-se muito para além do que era expectável, todos os reforços eram necessários.
O pelotão que hoje se punha a caminho era formado, maioritariamente, por jovens adultos, mal saídos da puberdade. Era um bando de jovens a quem faltava o ímpeto guerreiro que tinham visto nos seus pais. Estes jovens percebiam que a guerra se estava a arrastar indefinidamente e que, ainda que a ganhassem, nada justificaria as baixas que se sentiam. Todas as famílias estavam, neste momento, de luto, por um irmão, um pai, um tio e até, mesmo, um avô. Gustavo tinha sido poupado, até ao momento, a esse esforço de guerra. O seu pai tinha sido dos primeiros a cair em combate e, como ele era o único sustento da família – constituída pela viúva, sua mãe, e por mais duas irmãs, tinham decidido que Gustavo se iria manter na aldeia, não partindo para a frente da guerra. Contudo, as baixas eram imensas, as necessidades de homens que combatessem infindas. Já pouco importava se era Gustavo quem sustentava a casa. A necessidade de o ter, junto dos outros jovens, era incontornável. E assim aconteceu: um dia, Gustavo recebeu uma missiva que o convocava para se juntar à frente de combate… Tinha-se passado uma semana desde essa convocatória. Desde esse dia, as lágrimas eram muitas. A mãe, que ainda se demonstrava inconsolável por ter perdido o marido, sentia que estava prestes a perder o filho varão. As irmãs choravam pelo irmão mais velho, por sentirem que ficariam, doravante, completamente desprotegidas e, há que dizê-lo, pelos jovens amigos que também iriam partir, acompanhando o irmão. Gustavo guardou uma última visita para o dia da partida. Queria guardar a imagem da sua amada na mente e no coração. Ainda que quisesse muito ver e abraçar Madalena, a dor da separação já o dilacerava. Não conseguia apagar da mente a imagem da sua amada, com as lágrimas a caírem-lhe quatro a quatro, quando a tinha informado sobre a convocatória… Despedir-se dela iria ser o mais difícil. Mas tinha de o fazer. Gustavo caminhava lentamente em direção à casa da sua amada Madalena. Este momento era-lhe deveras difícil. Na mão levava um manto que a mãe tinha bordado e costurado pelas suas próprias mãos. Ela realizara aquela pequena obra de arte para oferecer à primeira filha que se casasse, mas considerou que oferecê-lo a Madalena seria, naquele momento, a decisão acertada. Gustavo chegou então a casa de Madalena. Bateu à porta. Ela veio recebê-lo com um semblante triste. Os seus cabelos cor de fogo, habitualmente tão brilhantes, estavam baços, tal como estava a sua cara. Ainda assim, Gustavo reparou que ela envergava, para a despedida, o seu melhor vestido e que tinha adornado o seu cabelo com florzinhas do campo. Gustavo sorriu. Ela era tão bela! Mostrou-lhe o manto, referindo que era a sua prenda de despedida. Não trocaram muitas mais palavras. Gustavo enlaçou-a, cobrindo-a com o manto que lhe tinha oferecido. Sentia o calor do seu corpo atravessar as camadas de tecido. Ah, como ia sentir falta desse aconchego – pensou ele. Depositou-lhe um beijo terno na cara. Pensou que era essa imagem que ele queria guardar para todo o sempre na sua mente. A beleza dela e aquele momento que, apesar de carregado de tristeza, estava carregado do amor que os unia, do aconchego que ela lhe transmitia. Queria gravar essa imagem do beijo, do abraço, da sua amada para a eternidade. Meses mais tarde, quando Gustavo tombou em combate, foi essa a última imagem que lhe atravessou a mente. Quem olhasse para aquele corpo ali largado, para aquele rosto sem vida, poderia ver, estranhamente, um leve sorriso na ponta dos lábios. Gustavo tombou em combate. Perdeu a vida. Mas temos a certeza de que a última imagem que lhe atravessou a mente não foi o horror daquela batalha, o sangue e a lama, mas sim a imagem dele próprio a abraçar e a dar um beijo à sua linda Madalena, de olhos fechados, com flores no cabelo, embrulhada num manto e num abraço.
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Amado por uns, odiado por outros, José Saramago é uma figura incontornável da literatura portuguesa. Aludir ao Nobel da Literatura no pretérito perfeito seria admitir que com ele partiu o legado. Acreditamos que a obra faz permanecer o homem. Partilhamos contigo dez citações incontornáveis de José Saramago. " A nossa maior tragédia é não saber o que fazer com a vida." "Não tenhamos pressa, mas não percamos tempo." "O caos é uma ordem por decifrar." "É necessário sair da ilha para ver a ilha, não nos vemos se não saímos de nós." "O destino que temos e o destino que somos." "O tempo das verdades plurais acabou. Vivemos no tempo da mentira universal. Nunca se mentiu tanto. Vivemos na mentira, todos os dias. " "A felicidade consiste em dar passos na direção de si próprio e ver o que se é. " "Só se nos detivermos a pensar nas pequenas coisas chegaremos a compreender as grandes." "Há duas palavras que não se podem usar: uma é sempre, outra é nunca. " "Dentro ou fora de mim, todos os dias acontece algo que me surpreende, algo que me comove, desde a possibilidade do impossível a todos os sonhos e ilusões. É essa a matéria da minha escrita, por isso escrevo e por isso me sinto tão bem a escrever aquilo que sinto. " Apostamos que estas frases te inspiraram, por isso, aproveita o momento para criar as tuas.
conto e André Nunez, participante de workshop de escrita criativaO som acutilante espalhou-se por uma íngreme calçada portuguesa na transmutável Lisboa, e uma faca voltou a estar afiada. Numa sociedade em constante mudança, o som não tem uma origem percetível para todos. O som está perdido nos ouvidos de idosos em aldeias brancas com um banco de jardim que assinala o centro dessas localidades, onde amoladores de facas trilham caminhos que se estendem por vários quilómetros. Poder-se-á dizer que qualquer jovem até aos 35 anos só conhecerá este som se por alguma via um familiar ou colega possa ter escolhido essa melodia falaciosa como mero toque do smartphone. Mais propriamente, um toque de chamada associado a pessoas que disturbarão a paz interior por intensos minutos, algo muito possível. Nesta calçada, o amolador especializa-se em facas de médio porte, tal como o pastor alemão que mora em frente e gane apenas face a este senhor.
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Fevereiro 2024
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